ZOADA DE AZULEJO

Páginas: de 01 a 06
O Esmiuçador de Pensamentos
Às vezes eu acordo pensando que um abraço apertado me salvaria. Mas quando olho pro lado não vejo ninguém. Resignado, fecho os olhos e volto a dormir.


E quando no meio da madrugada os pensamentos reprimidos, esquecidos ou desconhecidos vêm à tona como que com vida. É! Eles têm realmente vida própria, querendo tirar-nos propositalmente a paz fúnebre das noites de sono perdido na alcova. Qualquer um está sujeito a eles. Imagine um cidadão que pela manhã beija a esposa, acalenta os filhos e vai trabalhar. Gozando de um saudável, ou no mínimo normal, ambiente de trabalho, pode até dar-se o direito de uma esticadinha a um happy hour com os amigos, bebendo uma lapada e jogando conversa fora.
No seu carro e com seu case de CDs preferidos, que o faz companhia até seu lar, o homem chega a sua casa e encontra sua família feliz.
A noite chegou e a rotina continua. Podendo até ser quebrada por uma eventual festa de aniversário ou casamento. Mesmo com esse dia perfeito, no silêncio esperado da noite, depois de uma oração tenebrosa por acordar pensamentos polutos, que sabem as horas certas de se manifestarem.
Na “Ave Maria”, como que em fleches de luz: pênis em encontro a algum lugar lembrando vagina de virgem coberta por manto branco, rosto angelical e imagens santas eretas. Posições que podem lembrar filmes pornôs. Desde os mais adolescentes aos mais bizarros aperitivos sexuais.
Sem parar por aí, mesmo em volta a tapas na cara, choro e mais reza para os mesmos santos que sua mente acabara de estuprar. Passa-lhe pela cabeça aquele homem na cruz e sexo e pênis e ânus e mais desgraça na minha vida.
Homem normal que pensa estar dominado por forças do mal, mas o mal é incapaz de fazer. Pelo menos é o que ele acha. Depois de muitos soluços, vultos e compressão do corpo sobre a cama em frente à TV ligada madrugada adentro, o rapaz pega no sono com a cabeça pesando toneladas e uma sensação de derrota por um inimigo que parece dormir na mesma cama. Ao seu lado.
Amanhece. Ele faz tudo sempre igual com alterações previsíveis. E a cura? Impossível se curar de pensamento. Ir a psicólogo é perder tempo, a não ser que nem ele se escute. É tipo: escute o que não se responde.
Nunca tentem se colocar no lugar daquele garoto. Garoto bom, normal e negro: pense num recreio, 15h e ao léu num colégio católico, onde todas as freiras e santos espalhados em imagens e quadros parecem dormir andando para o preconceito vistoso.
É impossível descrever sentimento. Ele chora a cada palavra, lágrimas que lhe tiram sangue da alma. Vaga só e arrudiado por crianças normais, iguais a mim, que gozam lépidas sua hora de lanche.
Com seus pensamentos, em qualquer ponto daquele colégio, só, sente-se seguro. Seu corpo treme a cada olhar em sua direção. Preferiria ser invisível a ser um esquecido nos guetos do pátio, enquanto entra em transe imaginário.
Como seria se pudesse participar de cada patota que avistava pela janela de cobogós na estrutura da rampa, ou por reflexos de portas entreabertas.
Ele se revolta quando cinicamente o inspetor o recolhe de seu refúgio e joga-o na jaula com os leões, alegando ser o recreio para se divertir e que tinha que se enturmar, ou seria para sempre uma pessoa tímida e insociável.
Foi esse mesmo indivíduo que viu aquele garoto com os músculos trêmulos quando descia a rampa e na cabeceira, como que a espreita de uma vítima, os bons se reuniam em rodinha, com garotas bonitinhas e descolados da classe.
Vendo-os, o garoto tenta voltar de cabeça baixa e se comprimindo na parede para não ser visto, mas sem demora é escutada uma voz imperativa dizendo: ei você! Volte aqui, você tem que passar por aqui.
A idade: uns 6 ou 7 anos; a conversa proferida e ouvida dali em diante:
_ O que você pensa que é, hein neguinho safado? Você aqui não tem vez. Não tente se enturmar aqui não, se não te darei um murro. Sua bicha negra e gorda, vá! Volta pro seu lugar por aí escondido. E olhe pra mim! Olha pra mim quando eu estiver falando com você. Agora vá, vamos. Vá embora!
E ainda de cabeça baixa, só via o rosto de quem o chamou por reflexos de olhares. É esse o que nunca lhe sairá da cabeça.
Em meio a risadas finas e grossas, tremula a alma, sem dizer uma palavra, em meia volta percorre o caminho do corredor contrário. Ainda sem chorar, e tonto, perdido em um emaranhado de sensações, apressando seus passos, finalmente chega à porta de seu amigo: o Banheiro. Lá dentro, cercado de azulejos beges, surdos-mudos, mas que veem tudo no reflexo limpo de detergente, o menino chora por uns 20 minutos. Se esvaziando de sonhos, desejos, necessidades, ambições, orgulho, amor, ódio, audácia, agilidade, beleza e bondade. Tudo escorre chão a ser limpo.
Sinal toca, alguns papéis higiênicos, ouvido na porta, lava o rosto, mais papéis higiênicos, um respirar profundo e de volta à sala de aula como se nada tivesse acontecido.
Ele ia aprendendo o bê-á-bá dos livros inúteis para a sua pequena vida.
Voltando a casa, só queria um toque, qualquer um, nem que fosse um esbarrão. E depois em seu quarto, olhando o teto e tendo mais uma vez latejantes perguntas. Sua mente quer saber o porquê disso. O que é isso senhor que acontece comigo? Como podem me machucar assim? Como podem me subjugar? Moer-me? Derrotar-me com palavras que não sei de onde vêm. O que é que eu faço? Não tenho respostas. Eu só quero ser caro, um abraço, um aperto de mão. Poder andar, falar, dar minha opinião. Por que não? Por que eu vim ao mundo então? O que foi que eu fiz? Será que eu mereço isso tudo? Será que é para eu ficar quieto e aceitar tudo? Eu realmente devo merecer cada palavra dessas. Eu não sou normal. E é tudo culpa de quem?
Sem respostas ele pega no sono, anestesiado por tanto choro. É comum a pontinha de dor de cabeça. Ainda terá de fazer a lição. Outro dia surgirá. e tudo de novo.
E se batesse naquele garoto? Mas ele não tem vontade de bater. Ele não tem raiva do garoto. Mesmo com seus poucos anos, parece saber que não é culpa dele. E não sabe de quem é. Desconfia de seus pais, da sociedade, do inspetor, não sabe ao certo.
Um murro, um dente quebrado e todos contra ele e chamariam sua mãe e teria que contar aquela humilhante história.
Não, de-fi-ni-ti-va-men-te, NÃO. É muito vergonhoso. Se só respondesse no mesmo tom? se safaria daquele momento e iria até, quem sabe sorrindo, para o pátio. Mas fadadamente poderia ser abordado como coisa preta, tição, neguinho safado, e empurrões, e chutes, e chacotas, e gozações o abrigariam a falar grosso e imperativamente com todos. E sempre.
Não, não sou capaz. Não aguento ter que me defender do que eu sou. Realmente eu não aguento. Sou fraco. Não tenho forças. Voltaria às escondidas para os cantos do pátio. Lugar seguro de onde nunca deveria ter saído.

Eu nunca lerei isso que eu escrevi. Eu pulo as palavras, as palavras me incomodam, só elas mesmas; inofensivas, já bastam para me fazer abaixar o rosto ou pôr o papel de lado e pensar. Quisera nunca as ter escrito. Apagar também não vou. Todos verão e sentirão o mesmo. Eca! Para que desenjaular coisas que só existem para ficar presas?

Páginas: de 07 a 17
O sexo é uma droga. Tem que ser controlado, medido, pensado ou nos tornamos reféns de uma hora pra outra. Obriga-nos a fazer coisas impensáveis. Esse assunto entra de forma fantasiosa, como queriam que fôssemos os pudicos, ainda deixo pistas sobre a verdade. A verdade do sexo incontrolável é triste, nos reduz a pênis, a vagina em busca de gozo, atordoados a procura de alguém ou alguma coisa que possa lhe proporcionar isso.
A mente não tem liberdade. Ela pensa, mas não escolhe pensamentos. Quando eu mais preciso dela, ela vem e me derruba. Ela manda em tudo.
Até quanto um homem puro com a mente podre pode ser considerado puro? Só não pôr em prática basta? E se pôr escondido... Melhor seria não os ter, Os Pensamentos de Sexo.
Eles fazem parte da vida de todos, mas a alguns dominam. Eles vêm sempre: preciso me masturbar para acabar de ler o livro!
Não quero um pouco hoje, um pouco amanhã, um pouco sempre. Quero tudo hoje.
Parece que vou gastar tudo, pretendo esgotar tudo e depois seguir. A partir daí, continuar incólume pela vida.
Meus heróis são os que têm um, só um: sentem atração total e todos os dias. A recíproca reage bem. Ser este é bom. Um ideal. Uma miragem.
Ser prisioneiro do sexo é uma desgraça. As doenças se sucedem e não me salvam, não mudam nada.
Tenho vergonha de pisar numa igreja, pois já fiz sexo com aqueles santos pendurados. Até quanto é enfermidade o que já nasce com a gente? Deus nos fez enfermo, pra quê? E se todos dormem e alguns estão acordados? Meu único problema é você achar que eu estou errado.
A vida é sexo, mas não todos os dias e sim tudo em um dia. Só acabará quando morrer, acho...
É muito para este plano. Pode-se viver só de amor? Só de sexo, pois. O inferno já é aqui. Cada cena me afasta e me puxa. Mesmo só, tenho a minha mente na cama. E quem a criou?
Não quero ser assim, mas também não quero ser igual a ti.
O mundo gira em amanhãs quase salvadores.
Imagine um homossexual condenado sem julgamento a ser homem e gostar de outro homem sem poder exercer seu gosto livremente.
Isto só é verdade para poucos que, mesmo assim, criam seus guetos luxuosos e lá confinados submetem-se aos seus prazeres íntimos. Aos outros, resta vagar pela noite, às vezes ainda crianças, em busca de macho.


Acordo. Permaneço na cama matutando meu roteiro do dia, a que brecha eu vou atrás de sexo, e tomando café normalmente diante da minha família, não controlo mais meus pensamentos. Órgãos latejando, já me sinto molhado de sêmen.
E ele perde a fome, vai tomar banho, esfriar a cabeça e continua seu dia apressado. Chega à tardinha. Num banho providencial lava suas partes íntimas, cada uma das que a outros poderá mostrar. Escova os dentes testando o hálito. A roupa é estrategicamente escolhida, perfuma-se e sai.
Mentindo o destino para a família, já na rua, sua amiga, vai definir o local a começar a procura, o centro da cidade: recanto de roubos, prostituição, drogas e sexo. Ele percorre aquelas esquinas repletas de vitrines refletindo a sua imagem deformada.
Ao passar por uma, troca de olhares, quem sabe uma conversa... e não se agradando vai a procura de mais. Já suado, resolve mudar de cenário. Agora vai às praias, paraíso que à noite torna-se o mais lindo motel a céu aberto do mundo. Mas não tão confortável quanto lindo. Vê-se em cima de canos, no paredão, nas pedras ou sobre a grama. Casais homo e hétero devorando-se uns aos outros, em beijos estalados, mãos violentas, calosas de trabalho, esfregando em corpos, dedos em orifícios, vai e vem dadaísta, camisa de vênus aos montes na areia, vai e vem de moleques em bicicletas com o corpo esculpidos de vagabundagem e à noite vão descolar uns trocados na praia. Arrancam dinheiro de alguns coitados que precisam de um gozo. O que eles dão em troca? Permitem uma chupada ou dão-lhe uma topada com suas varas.
À beira mar sentia-me único, dono de mim, bonito. Todas as incertezas eram perdoáveis naquele local e naquele horário.
Já cedo não tinha controle sobre meus desejos, pensava ser uma fase, que iria passar rápido. Cada noite eu queria ousar mais, experimentar tudo pensando ser aquela a última noite. Engano meu, noites sem fim se repetiriam ciclicamente. Cada uma seria a última na minha mente.
Ando pelas ruas mendigando carinho. Tudo seria mais fácil se me olhassem e me vissem.
Nascer condenado, é assim que eu defino ser homossexual. Ser viado seria igual a não ser se eu vivesse sozinho.
Por que deus define o que é certo ou errado e nos dá opção?
Dar-nos escolha é não as dá.


A professora de inglês entrou na sala de aula e começou a fazer a chamada:
Aline
  • Presente
Amon
  • Presente
Ana Carolina
  • Presente
Ana Paula
  • Aqui
Andrea
  • Presente
Andréia
  • Presente
Antonieta
  • Presente
Ariadne
  • Presente
Carlos Chen
  • Presente
Catarina
  • Presente
Charles
  • Tô aqui
Cleana
  • Presente
Daniela
  • Presente
Emanuelle
  • Presente
Érica
  • Presente
Everaldo
  • Presente
Florisvaldo
  • Presente
Ígnea
  • Oi (com a voz bem melosa)
Ivana
  • Presente
Jairo
  • Here
Jordão
  • Presente
Karine
  • Presente
Laura
  • Presente
Leilah
  • Presente
Louise
  • Presente
Luzicássia
  • Presente
Marcko
  • Presente (voz baixa e só as bolas dos olhos sobem)
Maria Cícera
  • Presente
Mary
  • Presente
Olivan
  • Presente
Olívia
  • Presente
Reinaldo
  • Presente
Renata
  • Presente
Tiago
  • Pois sim, Professora
Victor
  • Presente
Vivian
  • Presente
Wanessa
  • Presente
Wesley
  • Pois não


(Tentei de todas as formas mudar minha condição de homossexual. Em vão. Estava condenado a ser diferente.)


See you, see you. Eu e mais um casal de conhecidos fomos juntos ao ponto de ônibus da Praça Sinimbu – nome que homenageia o insigne político de meados do sec. XIX, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, nascido em São Miguel dos Campos, AL, e conhecido como Visconde de Sinimbu. Eu até poderia pegar o mesmo ônibus que eles: o que passa no bairro Trapiche da Barra, mas esperaria o Integração, pois não tinha dinheiro para passagem.
Trapiche-Vergel passou depois de apenas cinco minutos de espera. Agora estava a sós no ponto. Olhei para o meu relógio de pulso water proof e confirmei as horas; 19h. A rua estava se desertificando e resolvi ir a pé novamente para casa.
Cortei caminho pelo centro, subi a Ladeira da Catedral, atravessei a rua antes de passar pela Gruta de Nossa Senhora esculpida na pedra, aos pés da Igreja Catedral de Maceió. Mesmo assim, mesmo sem olhar, me benzi. Segui em frente até o calçadão do comércio central. Lá, vários homens circulavam e entreolhavam-se discretamente. Passava rápido e ressabiado por eles. Queria, inutilmente, disfarçar meu real motivo de estar ali: Desejo.
Numa das esquinas do centro, avistei um rapaz beirando seus vinte anos numa bicicleta. Chamou-me atenção sua forma física – pareceu-me que ele era adepto de esportes – e seu short tipo cotton para ciclista. Se eu passasse por ele, poderia sacar algum volume por debaixo daquele short apertado. Inseguro, mesmo assim eu fui em frente. O desejo é o maior dos meus sentimentos agora. Passei ao lado dele e olhei disfarçadamente, se é que isto é possível àquela distância. O volume estava lá, mas depois dali não sabia o que fazer. Quero acabar com tudo hoje, quero experimentar de tudo hoje, satisfazer todos os meus desejos e daqui seguir em paz; ser normal.
No entanto, só conseguia passar e olhar. Não tinha certeza de ninguém e não queria que tivessem certeza de mim. Olho para trás e percebo que o ciclista me segue. Segue-me ou faz o mesmo percurso, esquina após esquina. Cansado, resolvo parar. Encosto-me a uma pilastra de loja e espero o sangue esfriar. Distraído, quando me viro, o ciclista está pedalando bem a minha frente. Gela-me o sangue e dispara o coração. Pela sua camiseta regata vejo os seus braços fortes. Ele se aproxima e pergunta _ Oi, tá dando um rolé?
Respondo com a voz meio gaga: _ É, tô indo pra casa.
_ Você mora aqui perto?
_ Sim, tava no inglês e agora estou indo para casa. Moro próximo a Praça da Faculdade.
'mentira em parte meu endereço, moro por ali, mas não ali.' Começo a andar e ele me acompanha pedalando lentamente sua bicicleta.
Entre olhares e hiatos de silêncio, passamos por uma obra abandonada. Ele, sem dizer nada, entra. Eu reluto, mas em seguida tomo a decisão de acompanhá-lo. Antes de entrar, percebo do outro lado da rua um vigia que nos olha, mas não esboça maiores preocupações.
Lá dentro, ele está encostado num pilar e acariciando seu pênis duro por cima do short cotton. Apresso o passo, quero acabar logo com isso. Na sua frente, acaricio todo o seu corpo. Suas mãos sobre mim trazem paz naquela hora. Até parece que já nos conhecíamos.
Pego em seu membro duro – era grande –, percebia-se algumas veias por cima dele e muita carne; sobrava carne quando se cobria a cabeça. Era um pênis macio.
Disposto a pôr fim em tudo, eu coloquei o pau dele na minha boca, mas sem jeito, tirei logo, fiquei com medo de machucá-lo. Ele tocou na minha bunda e eu deixei, 'quero todas as sensações'. 'essa será minha última vez.'
Pus minha pasta num canto da obra e o agarrei com todas as mãos, quero sentir todo o seu corpo. Todos os cantos que eu tocava era duro; só tocá-lo me dava prazer.
Perguntei _ Você beija? Ele fez sinal que sim com a cabeça, então encostei meus lábios no dele e, sem jeito, senti-o até os dentes. Foi um beijo rápido e atrapalhado. Foi o meu primeiro beijo.
Dessa vez não houve penetração. Com a minha mão me masturbei e ele se fez com a dele. Rapidamente o jorro de gala se mistura ao pó do chão. Confuso, olho nos olhos do ciclista e digo _ Obrigado, cara! Hoje eu descobri que'u não gosto de homem! Escuto um risinho cínico pelos cantos da boca e segundos depois o ciclista sai pedalando obra abandonada afora.
Na escuridão, não consigo encontrar minha pasta. Escuto o som de sirenes se aproximando, vou até a beirinha da entrada para ver e vejo um carro mais duas motos de polícia parando à frente da obra. Corro para os fundos, a cabeça tenta pensar rápido, faz mil cálculos em segundos; tem um muro ali no fundo, mas se pulá-lo perigo levar um tiro. O jeito é olhar pra frente e obedecer à ordem imperativa do policial para deitar-me no chão com as mãos na cabeça. Um deles se aproxima e me revista. Sou erguido e levado pra fora da obra, algemado. Meus olhos arregalados refletem as armas dos policias. No fundo, eu só tinha uma certeza; de que aquilo tudo acabaria e em minutos estaria no meu Quarto.
Um dos policiais pergunta _ O que você está fazendo aqui, garoto?
_ Eu só entrei pra mixar.
_ E o seu parceiro?
_ Que parceiro?
O vigia que nos avistara logo no início, antes de entrarmos na obra, se aproxima e afirma _ Ele entrou com um parceiro, deviam estar usando drogas.
_ Não! Eu entrei sozinho, aquele deve ser um viado que me seguiu.
O policial chefe, então, caçoa _ Você também parece um viado, menino!
Em meio a risadas de todos, eu, humilhado, abaixo a cabeça e aceito passivamente toda aquela situação.
Acabada a algazarra, o policial chefe tira as minhas algemas e diz _ Vá embora, vá! Siga em frente e nem olhe pra trás se não eu te levo pra 1ª DP – na levada.
Ando zonzo, tropeçando em meus passos, e numa velocidade crescente. Sem conseguir identificar pensamentos nem sentimentos. Chego a minha casa, abro o portão e, enxugando o suor, cruzo a área, entro à sala e o Bicho, logo a irmã que eu não falo, está deitada lendo um livro no sofá da sala. Meu olhar e o dela se encontram, o meu segue em frente e o dela me desseca, me olha até o chão.
No meu quarto, tiro a camisa e jogo-a debaixo da cama. 'Preciso de um banho!' Enquanto tiro a calça jeans, percebo o que minha irmã olhara: as pernas da minha calça estavam toda suja de terra de quando eu deitara no chão às ordens do policial. Quis chorar! Mas ao invés disso, fui tomar banho.
O que eu sentia, o que eu era, não podia transparecer. Aquele era só mais um dia, daqui a pouco você estará deitado na cama e sua mente pensará sobre tudo o que ocorrera. Quase pego no sono quando um desespero mudo me acomete. 'Minha pasta!' Esquecera minha pasta com meus livros de inglês na obra abandonada do centro. Naquela noite vi o sol raiar na janela do meu Quarto. Exausto, não consegui pregar os olhos um minuto sequer.


Sentimento avassalador
Num quarto escuro, nu
Contrações de mim e tu
Nuli-claridade, amplificador da dor
Numenismo do amor avassalador
Nupciando o gerador de encanto, o encantador
Nuvens de um lado remetem à ilusão
Saiba que neste quarto, nada brilha afora a escuridão.




Páginas: de 18 a 24
Acordei cedo para revisar as lições de Matemática. Hoje é segunda-feira, último dia das provas bimestrais. Eu me sinto preparado. Gosto de números. Fui dormir tarde ontem, em meio a catetos e hipotenusas.
Acontece assim: entramos, as turmas são misturadas para dificultar a pesca, vem um professor e entrega as provas correspondentes a cada turma.
Mesmo assim dá para armar um esquema e passar pesca. (Como as provas são objetivas, e uma lista de chamada é passada nos primeiros trinta minutos, dá para se pôr a letra das questões já respondidas – bem clarinho, de lápis – no nome a quem se queira ajudar. Borrachas com capas são ferramentas amigas dos pescões. Pedaços de papéis podem caber resumos de livros para depois caberem na capa da borracha. Dependendo do professor que aplique as provas dá até para trocá-las. O difícil é ser sortudo o suficiente para destrocá-las com a mesma sorte). O exercício de forjar a pesca já é a revisão de véspera. Quando acaba a prova, estamos liberados para voltar para casa e estudar para a prova do dia seguinte.
Fiz a prova rapidinho, tava afiado na matéria. Na realidade, fiz a prova rapidamente porque estava descompromissado.
Desci às 14h:45, a prova ia até as 16h.
Quando cheguei ao pátio da escola, fiquei na escada que antecede a rampa. Sozinho.
De lá, tem-se uma visão geral do pátio. Foi de lá que pude ver o Wendell saltando de felicidade. Acho que ele fechou seu simulado. Minha irmã mais velha também terminou cedo, avistei-a conferindo o gabarito no canto direito do pátio. Meu olhar corria de um lado para o outro, queria enxergar meus outros irmãos, mas os detalhes passavam despercebidos por meus olhos. Meu coração disparou quase na mesma hora que o sinal tocou. As horas passaram-se depressa demais.
Cruzei o pátio lentamente em linha reta, tudo estava distante: sons, pessoas, pensamentos. Não conseguia concatenar nada. Não queria pensar em nada. Não queria voltar atrás.
Subi as escadas, 52 degraus, e percebi a segunda porta à direita fechada. Escutava muitas vozes vindas de lá. Vozes animadas e adultas. Abri a porta devagar, a primeira pessoa que avistei foi o inspetor Everton Cavalcante, ele olhou para mim assustado. Tentei adivinhar o que ele estava pensando. Desisti. Abri a mochila e tirei a arma. Quando olhei para frente, todos ainda estavam paralisados, esperando o desenrolar da cena.
Primeiro tiro, o inspetor Everton cai ao chão. Gritaria, pânico, desespero. Segundo tiro, na cabeça da Professora Sandra, as paredes se sujaram. Terceiro tiro para frente pegou no ombro da Professora Tânia, ela começa a rezar. Eu vi um manto branco me segurando por trás, virei e foi o quarto tiro. Tudo já estava vermelho. Irmã Val estava no chão. O Professor Givaldo grita comigo, quer me bater.
Eu comecei a chorar, chorava muito e estava trêmulo. Não queria que ninguém me visse. Corri pelas escadas, minhas pernas não me queriam sustentar. A essa altura todo o pátio entrava em furor. Escutei muita balburdia. A arma ainda estava na minha mão, totalmente descarregada.
Esqueci de presenciá-los morrer, quero que suas almas tentem em vão me parar. Voltei e postei-me à porta da sala dos professores e lá fiquei, olhando o sangue, olhando o branco. Sentimentos? Alguns, ou melhor; todos. Até rir eu ri.
Sinto de novo um vulto me segurando, agora mais forte. O porteiro que me viu entrar naquela escola no maternal me imobiliza. Sou jogado ao chão. De lá, consigo ver meus irmãos chorando compulsivamente ao meu redor.
Escuto sirenes tocando, a polícia chegou. Sou levado algemado. Não vi mais nada. Estava olhando pro chão do pátio.
Abri com uma mulher e fechei com um homem
Meu Marckinho vai nascer, meu Marckinho vai nascer. Na maternidade, o obstetra diz:
_ Parabéns Dona Maria, abri com uma mulher e fechei com um homem.
Sou o filho mais novo de uma família de 4 filhos. Mas por pouco tempo, quando completei 10 anos, mainha engravidou de novo. Todos acharam estranho, afinal ela não tinha ligado as trompas.
Na realidade, mainha pagou a um agiota com uma noite de amor. Painho nem desconfiava que quando ele teve leptospirose, as águas de coco levadas diariamente ao hospital eram culpa.
Minha mãe passou num concurso público para ser bióloga da Universidade Federal de Alagoas, com uns 34 anos. Um pouco antes ela conhecera meu pai, então seu cunhado, namorado da tia Verônica. Cozinheira de mão cheia, mainha o fisgou pela boca – usando beijos escondidos enquanto tia Verônica estava no banho também –.
Tia Verônica era gorda e simpática, mainha; magra e carismática, não se conformava em estar solteira já passando dos 30.
A troca ocorreu bruscamente, numa noite, ao invés de Ô de casa, Verônica, cheguei; ouve-se: Ô de casa, Maria, sou eu.
Tia Verônica não dizia nada, só chorava. Ninguém entendeu muito bem toda aquela situação, os vizinhos olhavam, meus avós olhavam, minha tia olhava e só olhavam; ninguém reprovou ninguém. Parecia tudo tão normal. Quando a vizinha Benigna resolveu falar, disse: também, quem manda não saber cozinhar. A culpa é dela.
Tia Verônica não se afligia em perder o pretenso marido, e sim a pretensa família. Para ela, que cresceu sob a batuta superprotetora de minha avó, se ver só no mundo era desalentador.
O novo casal namorava na Praça Santa Teresa, nos bancos em frente ao correio do bairro, vendo crianças escorregando no rela-rela amarelo de cimento.
O amor serve para tantas coisas que às vezes até nos torna felizes
O clima na casa não se inflamou. Quando Tia Verônica aludia reclamar seu homem à minha mãe, esta – religiosa como era –, declamava citações bíblicas enquanto preparava a comida.
Quem você pensa que é para julgar os outros”. [Tiago 4,12]
Ninguém perdoa ninguém, perdoa-se a si mesmos. Isso fez com que minha mãe cassasse mais cedo e ficasse com a casa em que foi criada no bairro da Ponta Grossa, periferia da cidade.
Dona Maria é uma típica mãe nordestina que dá um jeitinho pra tudo. Apesar de graduada, concursada e professora, ela escorrega com frequência no português. Eu, por minha vez, cresci trocando o m por n, o p por b, o t por d. Eu sei as regras, mas há uma espécie de bloqueio em minha mente que me faz errar. Não sei a quem culpar. Tenho muita vergonha desses erros. É como o suor, você fica nervoso por suar e acaba suando mais.
TDA – Tertúlia Dramática da Alma
No entanto, minha mãe quis filhos com sorte melhor que a dela. Matriculou-me no curso de inglês da Cultura Britânica quando eu ainda era criança. Comecei no children one. Meu pai me levava ao curso nos primeiros dias de aula, depois ia só.
Quando foi criado o ônibus integração, que ligava gratuitamente os bairros adjacentes ao centro da cidade, pegava-o diariamente para ir e voltar. O curso de inglês era situado em um centro cultural da Universidade Federal de Alagoas. Lá, vários cursos eram ofertados: teatro, canto, música, desenho, línguas. ‘Um celeiro de viados’.
O local fica em frente a uma grande praça com um pequeno parque no meio, algumas árvores e pontos de ônibus em 3 dos seus quatro lados. Ao se entra no centro cultural, passa-se por um grande vitral onde se abriga um pequeno museu da cultura alagoana. Com dois andares, podia-se passar pelos jardins para subir ou cortar caminho na escadaria em frente à cabine de segurança.
O local tem dois banheiros masculinos: o de cima só é acessível por meio de chave que fica na secretaria dos cursos, o de baixo é liberado, todos podem usar, inclusive não-alunos. Era lá que a pegação rolava.
Quando entrei pela primeira vez no banheiro de baixo, ainda não sabia que homens se pegavam por lá. Como em quase todos os banheiros masculinos, lá há mictórios e cabines individuais, sendo a última equipada com chuveiro.
Nunca usei o mictório, entrava e saía várias vezes do banheiro a fim de sacar algum cara mixando.
Certo dia vi um cara acariciando o pau de outro homem, quando passei eles levaram um susto e pararam. Daquele dia em diante pude perceber que era possível ter contato sexual com outro homem naquele banheiro.
Voltava tarde para casa e culpava o ônibus pelo atraso. À noite, dormindo, sonhava em chegar logo o novo dia. Não aguentava de tesão. Dividir o quarto com minha mãe e ter esses pensamentos polutos me massacrava. Nesta noite, lá pelas 02h da madrugada, cobri todo o meu corpo com o lençol e comecei a me masturbar. Minha mãe dormia ao meu lado e acordou com a movimentação. Ela tirou o lençol do meu rosto e tive que ser rápido em fechar os olhos e fingir dormir.

Percebe o quanto é importante um garoto ter seu canto.’


Páginas: de 25 a 33
 “Perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia” [Poema Sujo – Ferreira Gullar]
Acordei cedo e perambulei pela casa procurando distração. Naquela manhã de sexta, queria assistir a um desenho em um canal diferente da XUXA, minha irmã do meio não deixou. Brigamos feio. Tapas, puxões, meu nariz escorria, eu suava bastante e nós dois chorávamos muito. Aquela não foi nossa primeira briga, outras aconteceriam e acabariam.
Meu pai, como sempre, nos dava liberdade para resolvermos nossas brigas. Enquanto brigávamos, ele preparava o almoço usando um short jeans feito de uma calça velha e com o peitoral cabeludo desnudo.
Por que será que os adultos acham não dever resolver as brigas das crianças. Por que eles acham termos capacidade de resolvermos sozinhos.
Acho mesmo é que eles têm medo.’
O Bicho
É um ódio que todo mundo tem.
E por que tem que ser assim!
Nossos primeiros inimigos convivem conosco. São nossos amigos também.
Por que é tão difícil crescer amando o irmão?
Brigo com ela pra ti ferir mais. Sei que isso punge a mim, mas mais-te.
Você quem quis me pôr neste mundo fadado, onde nada dá certo. O destino me marcou. A noite também.
Eu só quero ser feliz!
Faço as escolhas certas sim.
Faço o que consigo e da maneira que sei. Mas tudo já parece estar traçado.
Não tenho saída.
Fujo, fujo e carrego tudo comigo. Não consigo sozinho. Só, ainda fujo de mim. E não consigo.
Não que eu não quisesse abraçá-la, e mostrar-lhe o quanto a amo.
Mas não posso. Mais que isso: não consigo.
O inferno já é aqui.
Passo pelo mar diariamente e não muda nada.
Sei que deus está lá; nas águas e não no céu.
O céu é um vão, as águas são a criação. É dádiva. O presente maior.
Sua puta!
Rapariga!
Perebenta!
Nojenta!
Cachorra!
Safada!
Na realidade eu só quero nos salvar, nada mais.
Mainha nos olha e chora, roga ao céu sem saber o que está acontecendo.
Nem eu sei, mainha. Explica-me você que me pôs aqui.
Você me deu o que para receber carinho?!
Você me deu o que para desfrutar de uma família feliz?!
NADA!
Você só me tirou o direito de não existir. Deu-me a vida e me entregou a ela.
NÃO! Vou te mostrar que não é assim.
Não tinha consciência de nada. O ódio sem motivo era provocado por nada.
Parece que só estar vivo me incitava à revolta.
Quem são os culpados?
Meus pais!?
É uma solução simplista demais. Mas em primeira instância é a que eu tenho pra dar.
Sou fruto de almas e quem disse que agora é a minha hora?
Ou se tem três planos bês ou não se tem nada.
Já tô cansado, mas não vou sofrer só.
A culpa não é só minha, ora porra!
Juro que eu não queria fazer isto, mas sou eu quem se machuca mais. Se conseguir machucar um pouco os outros, talvez divida a minha dor. No final, quem sabe valerá à pena.
Mesa quase posta. Meu pai está com sua lata cheia e come feito um bicho no quartinho do quintal tendo como vista varais cheios de roupas cafonas e gatos cegos convivendo com galinhas, galos e pintos.
Minha mãe de calcinha velha com rasgão atrás – no fundilho – e o elástico desgastado aparecendo em algumas partes do cós está acabando de passar o cozido para a travessa branca com pinturas de folhas verdes que ganhara de presente de casamento.
Hoje é carne de chambaril, batata, quiabo, maxixe, abóbora, chuchu, cebola, tomate e temperos cozidos até o limite. Depois de tirados os sólidos é acrescentada a farinha ao líquido para formar o pirão.
O suco é uma especialidade de painho. Goiaba, cenoura e laranja batidas aos poucos no liquidificador e acrescido de gelo.
A goiaba é tirada do pé que fica no quintal lá de casa. A casa que já foi do meu avô tem uma goiabeira que dá fruto em abundância todo o ano, mas principalmente no verão. Eu gosto de goiaba, pois tenho buracos nos dentes e seus caroços ajudam a tampar. Os mesmos caroços foram responsabilizados por minha tia Verônica ter pedras na vesícula. A história ecoava no bairro; mainha servia bandejas e mais bandejas cheias de goiabas amarelas e graúdas.
_ Vamos, minha gente. Dá uma paradinha pro lanche.
Sobre a mesa, goiabas amarelas, suco delas e sanduíches de biscoitos cream-cracker com pedaços de goiabada.
O arroz branco acaba com tudo.
É domingo.
Aquela felicidade iminente que vinha dos olhos da minha mãe começava a mim incomodar.
O bicho chega a cozinha quando eu já estou sentado.
Passos firmes. Faz-se escutar desde o seu quarto.
Parece querer me preparar para a sua presença.
Eu de frente, ela adentra e é automático. Checamos um os olhos do outro.
Ela é uma das poucas pessoas que me olha nos olhos. E eu, nos dela. Não nos falamos, mas os olhos, esses se cruzam e se fixam em segundos eternos.
A boca dela já se entroncha de pronto.
Meu coração dispara.
Eu não quero aquilo, mas é assim que tem que ser.”
Ela pega o prato e os talheres, batendo-os.
Fico tenso.
Todos ficamos.
Ela prepara seu prato e quando chega perto de mim para tirar uma concha de pirão faz um barulho.
Xiii!
É um barulho de reprovação. Um muxoxo.
Estremeço as extremidades.
Sinto-me pouco.
Ela dá uma volta grande e estica os braços para rapidamente tirar uma colher grande da gaveta que estava atrás de mim.
Faz o mesmo Xiii! Só que mais alto. Como para constatar que esse sim eu escutasse.
Minha cabeça esquenta.
Finjo não a ver.
Finjo estar tudo bem.
Sou talentoso em fingir. Às vesses eu acho que finjo estar vivo.
A jarra do suco de goiaba, cenoura e laranja batidas aos pouco com gelo está próxima a mim.
_ Pega aquela jarra de suco, vai mainha.
_ Para com isso minha filha, pelo amor de Deus. Toma, toma logo, toma. Toma logo esta jarra. Vixe, meu Deus.
Aquele deus na boca de minha mãe soa como um deboche, uma provocação, uma deixa teatral. Galhofa.
Tomo a jarra da mão de minha mãe e derramo o suco todo na cara do Bicho.
Encharcada, ela atira seu prato cheio do cozido em minha direção, mas com minha mão direita o desvio para o chão.
Ela volta ao seu quarto sem almoçar.
Não derramamos uma lágrima sequer.
Vou ao meu Quarto sem experimentar uma folha daquele cozido.
Mainha roga ao seu Deus.
Chora.
Reza.
Implora.
Não entende por que isso acontece.
Ela teve o almoço de domingo que mereceu”.
Meio dia e meia, o horário do colégio se aproxima. Íamos todos juntos ao colégio, no caminho, eu, meus irmãos e uma colega passávamos por uma igreja e uma linha de trem, diariamente. Benzia-me mecanicamente. É só um gesto, o sinal da cruz feito com a mão direita sobre o rosto e o dorso, como aprendera na primeira eucaristia, mas fazia isso inúmeras vezes. Todos os minutos que se durava a travessia daquela praça. Mainha é muito temente: ora está na Igreja das Graças, ora acendendo vela para seus finados na Praça Pe. Cícero. Foi ela quem me puxava pelo braço para acompanhar a procissão de uma multidão: senhoras cheirando a coisa antiga com lenços de renda à cabeça acotovelando-se para ver um Frei italiano que fincou morada no nordeste e estava ali, na Praça das Graças, em frente à igreja, fazendo sua caminhada de evangelização.
O Frei minúsculo e corcunda, com sua indumentária marrom, cordão branco como se fosse cinturão, olhar de lado e cajado; era Frei Damião, como cantou Luiz Gonzaga, o quase santo Frei Damião. “Eu sou nordestino e estou pedindo a sua benção”.

Continuo o percurso ao colégio, era uma gritaria, gente feia, gente bonita e um trem passando no meio de uma feira. Entre outros horários, o trem passava ao meio-dia, quase sempre dava para vê-lo. Uma linha de trem margeada por lambe-lambes, várias barracas de chaveiros, botecos com sinuca, vendedores de ervas e _ Quem quer veneno? ouvia uma voz vinda da Praça do Pirulito. _ Vamos organizar a fila, tem para todo mundo. Não precisa empurra. Ao olhar na direção do som, não se via fila, não se via ninguém, só um senhor barbado sentado num caixote com um tabuleiro armado expondo venenos pra rato. Era uma cena triste e cômica ao mesmo tempo. Quando o trem apitava avisando que estava perto, era uma correria organizada para retirar os produtos expostos nos trilhos. Assim que ele se ia, o processo se repetia: os produtos eram expostos, pessoas passando por todos os lados e trilhos virando assento para clientes e ambulantes. Chego à hora no colégio.


Páginas: de 34 a 43

_ Você gostaria de ser negro, Marcko?
(Marcko é com CK mesmo e não foi erro do escrivão. Como para o que não tem explicação é designada uma pelo tempo, gosto do meu nome deste jeito. Se outro tivesse, outra explicação caberia e eu não seria mais eu. A minha é CK que no desenrolar de minha vida irá se auto explicar).
Se você me perguntasse se eu gosto de ser negro, meu âmago instintivo diria que não. Ninguém escolhe sofrer. E eu sei o real significado desta palavra. Podes me julgar, reprovar-me, mas mudar a cor da pele é ter coragem, ao passo, sou covarde.


Lívido
Mostrar-te-ei todo meu lado claro.
A claridade me cega.
A claridade me afasta de ti.
Fico zonzo, perdido e assim me transtorno, me obrigo.
Reflito tudo e não sei o que provocará isto.
O branco é o fundo desta página.
Sou preto.
No meu lado escuro tem tudo, sinto-me seguro.
Absorvo tudo,
Sou um pouco de todos os poucos que vivo.
O que eu não posso ver no escuro, eu toco.
O preto está acima do fundo.


Na realidade, o preconceito genuíno não o vejo mais. Vivemos em tempos de covardes.
O que vejo são movimentos de poder. Ponha-se em posição submissa e serás o alvo da vez.
Não! nada disso é pessoal.
Não! não leve por esse lado.
Lute como um igual e serás melhor.
O inimigo é oportuno, não quer o seu mal, mas de quem se sujeita a ele.
Se realmente não gostas de mim, nem o meu ar respires, nem minha mão toques, nem o calor da minha cadeira sintas.
Se te humilhas a esse ponto por um salário no fim do mês, por um diploma ou coisa afim, não sois nada. Corres feito uma lagartixa sem rumo e ao menor ruído.
Não és digno do título de racista.
Pioro a comparação com os que se abstêm. Esses sim são indignos.
Sanguessugas.
Gigolôs da luta alheia. Compartilham de mesma ideologia, mas não a praticam. Só se beneficiam dos resultados das batalhas dos que assumem a linha de frente.
Recuso-me a lutar contra esses.
Cruzo os meus braços e ignoro-os.
É só o que eles merecem.
Um tapa não é um tapa sempre se não vier junto com todo a carga de ódio e convicções capazes de elevar a quem bate e a quem apanha.

Caindo do cesto de palha ao lado do sofá encontro uma revista Manchete. Emborquei-me para ajeitá-la e acabei me desequilibrando e caindo com ela na mão. Segurando no sofá, levantei-me e deitei. A revista continuou na minha mão. Amassada.
Instiguei-me a lê-la.
As primeiras páginas eram cheias de fotos e fofocas da paixão da Ministra com o humorista da Escolinha do Professor Raimundo.
No miolo dela tinha o resumo do capítulo desenrolando o amor que surgira naquela gruta entre Leonardo Pontes e Marina Batista
Próximo do fim, os horóscopos. Não acredito em horóscopo – e olha que eu acredito em quase tudo, leio-os para passar tempo.
Logo abaixo dos horóscopos tinham algumas simpatias.
A fome apertando me alertava que a hora de ir à escola estava se aproximando. Leio rápido a que vem primeiro com os lábios mexendo e fazendo silenciosos ruídos com a boca.
Pegue um copo virgem e encha-o de água. Recorte um pedaço de papel em branco nas duas faces e escreva seu nome todo sobre ele. – Por extenso, sem abreviaturas – fixou. Passe este pedaço de papel com seu nome por todo o seu corpo. Esfregue-o em movimentos suaves pelo seu rosto, por sua boca, suas partes íntimas e os cantos de sua anatomia que lhe são mais agradáveis.
Dobre o pedaço de papel, ponha-o dentro dum copo cheio de água, cubra com mel – caso não o tenha, pode ser açúcar mesmo – e esconda-o debaixo da cama onde você dorme.
Após esse ritual, saia de casa e note que serás mais paquerado. É só aproveitar.
Na volta pra casa, depois de um dia de sucesso, retire o copo debaixo de sua cama e jogue o líquido com o papel em um jardim.
Segui à risca todos os passos dados por aquela revista.
Cismado, almocei olhando pros lados. ‘que seria de mim se alguém visse aquela simpatia bem debaixo de minha cama. Vergonha!’
Almocei.
Antes de sair fui cagar. ‘ainda bem que passei o papel pelo corpo antes disso. Imagina se o cheiro fica na mandinga!’
Não sei se funcionou ou não, mas sei que mais confiante fiquei.
Se olhavam pra mim me achando ridículo, eu acreditava estar lindo.
No recreio, resolvi descer e compra fichas para o lanche. A vermelha era para o refrigerante e a verde-escura para o salgadinho. Retirei uma sprite e uma coxinha na cantina e quando fazia o caminho de volta à rampa o chato do Jairo me intercepta.
_ Olha o Marcko por aqui! Nunca te vejo por aqui pelo pátio.
_ Pois, é. Mas já tô saindo.
_ Pera, Pera, Peraí! Vou te mostrar uma coisa. Ah, me dá um pedaço dessa coxinha.
_ Vixe Maria, ninguém merece. Toma. Resmungo baixo e arranco uma nesguinha do rabo da coxinha.
(Depois do recreio Irmã Val dará aula de religião na capela, temos que subir e descer de novo. Só em pensar fico nervoso.)
Jairo me puxou para um canteiro de flores no pátio. Mastigando ainda a coxinha, começa:
_ Tá vendo esta planta aqui?
_Hum rum.
_ É a Euphorbia Milli.
_ Eufo, o quê?
_ Não. Euphorbia Milli. É o nome científico dela. Martírios, já ouviu falar?
_ Já ouvi falar da praça.
_ Isso, ela se chama Praça dos Martírios, pois tem muitos martírios plantados lá.1
_ Tá, posso subir agora?
_ Pera! Nem tocou o sinal ainda. Quero te mostrar uma coisa. Tá vendo esses espinhos? Se você arrancá-los vai sair um sêmen que parece leite-moça.
_ É mesmo! E não faz mal, não?
_ Não! Faz é bem. Além de gostoso ele é bom pra barriga.
(como já estava com dor de barriga e adoro leite-moça, poquei três espinhos e suguei todo aquele líquido branco e pastoso.)
_ Argh! que gosto ruim.
Estava demorando. À trilha sonora das gaitadas de Jairo, corri até o banheiro do pátio. Além da vontade de cagar aumentar, queria vomitar e chorar.
sêmen de planta... devia-lhe ter falado para chupar o sêmen do meu pau’.
Eu tenho pena dele e tenho pena de mim. Penso no que ele sofreu para agir assim. Quais serão os problemas dele?

Trimmmmmmmmmmm

  1. Na verdade, até nisso Marcko foi enganado. O nome da Praça dos Martírios vem da Igreja que a margeia: Igreja Senhor do Bom Jesus do Martírio.
Irmã Valdenice, pontual, como sempre, nos espera à porta da sala, pacientemente, observa-nos tomando nossos lugares. Dez minutos depois, a aula de religião começa de fato.
_ Bem meus filhinhos, esta aula será um pouco diferente. Vamos ministrá-la aqui da capela. Acabo de chegar do Encontro da Juventude Cristã em Pernambuco e quero compartilhar com vocês sensações que eu e meu grupo sentimos lá.
Cada um sentado onde queria e eu fiquei no fim do banco da penúltima fila. Enquanto a irmã puxava a oração do Pai Nosso que estás no céu... eu passava a vista por tudo ao meu redor. Já havia entrado na capela, mas: sempre entrava, ajoelhava-me e rezava, sem nem olhar para os lados e nem saber ao certo por que ou para quem eu fazia aquilo. Era um ato involuntário.
Nas paredes, santos sobre pilastras, nossa senhora de Fátima lá à frente, do lado esquerdo da cruz. Seu José, pai humano de Jesus, à direita da cruz e, pelos corredores; esculturas retratando a Paixão e uma imagem de Savina Petrilli em destaque.
Não soubera muito de Savina, mas tinha curiosidade. Só conhecia que ela lambia feridas.
Atrás do ambão, o preâmbulo sobre a vida da patrona. Logo após Irmã Val nos faz um convite insólito _ Quem quer conhecer o Espírito Santo de Deus?
Sem saber ao certo o que significaria aquele convite, todos levantamos os braços’.
Irmã Val vai até o sacrário, abri devagar a portinha dourada que guarda a luz avermelhada que nunca se apaga e passeia por entre nós segurando-a como a um recém-nascido.
Então aquela luz é que é o espírito santo de deus!’
O coro do louvor A Ti Meu Deus é puxado. Todos nós o cantamos, enquanto ela se move lentamente por entre os bancos da capela com a luz acessa apoiada na palma das mãos.

A tua ternura Senhor vem me abraçar
E a tua bondade infinita me perdoar
Vou ser o teu seguidor e te dar o meu coração
Eu quero sentir o calor de tuas mãos. [A Ti Meu Deus, Frei Fabreti – Salmo 25]




Páginas: 42 ao FIM


Meu corpo começa a reagir àquilo tudo, e me vejo como que compelido a esboçar algum tipo de emoção. Senti meu coração palpitar, minhas mãos suavam, enxugava-as tempo em tempo na minha calça de brim azul-marinho. Quis chorar.
Algo de diferente eu senti ali, não posso precisar se foi a presença do espírito santo’.
Na saída da capela, quis falar com a Irmã Val. Em minha mente tudo estava eloquente. Quando tentei abrir a boca, ela se tremeu e não abriu. Irmã Val ainda olhou-me, mas saiu.
Ígnea, uma das loiras da sala, cochicha na porta apontando para santa e esfregando os dedos da mão um no outro. Em surdina, tento me aproximar para escutar a conversa.
_ Tu visses o rosto da santa, está meio úmido. Põe a mão lá pra tu sentires.
_ O que é úmido?
_ É meio molhado, parece que ela chorou.
Retorno à capela e caminho até a santa. Quando ponho-na o indicador direito, Ígneia, parecendo imbuída daquela presença, faz menção de me abraçar. Recuo de impulso, abaixo os olhos e saio.
Não! não me abrace. A cor do seu cabelo já é falsa o suficiente’.
... deveria ter dito isto ...
Cianopirro
Cianopirro no meu Céu
Mancho-me nesse barril
Caprichoso no meu quintal
Quero um pouco mais de tudo
Quando eu era bem pequeno, já me via neste contexto
Que seria se ao menos tu nesse azul me encontrasses
Dia esperado esse, seria sempre assim:
Eu pra você, você pra mim
Debalde te esquivas, corres em vão no infinito
Por onde tocas, sentes minha mão
E a trilha sonora é o baticum do meu coração
Contrapartida do chão roxo, duro que não quer se abrir
Se não abres, oh chão roxo!
Como flutuar neste colorido sem fim?

Lágrimas Secam por si Só
Certa feita mainha foi pagar alguns boletos no colégio bem na hora do recreio. Não me achando pelo pátio, ela subiu a rampa e lá estava eu, sozinho, sentado ao chão.
Ela se surpreendeu ao ver seu filho, brincalhão e brigão em casa, ali, sozinho e lanchando às pressas no chão da rampa.
_ Meu filho, por que não está lá em baixo com seus amigos?
_ Oi! O que você está fazendo aqui? Levantei rapidamente, espantado com aquela presença.
_ Eu subi mais cedo porque tô com dor de barriga.
Sem acreditar muito minha mãe fez uma cara de Ah, tá bom... e disse:
_ Meu filho, eu vim aqui comprar sua camisa dos jogos. Que ir lá comigo?
Então, lá fui eu comprar minha camiseta dos Jogos Olímpicos Escolar. Quando ela foi embora, já estava na hora de eu voltar à sala de aula.
Ser normal nunca foi normal para mim, sempre me senti diferente, ou fui forçado a acreditar que era. Não vou dizer que nunca desci ao pátio. Já o fiz várias vezes, só que sempre era uma experiência dolorosa. Parecia uma selva perigosa onde não havia regras e eu era uma das presas principais.
Crianças brincavam de pega-pega e me empurravam, ficava com minha cara mexendo e só queria me proteger, resguardar-me em um lugar seguro. Por outro lado tinham meus irmãos, não queria que eles soubessem pelo que eu passava. Tinha vergonha da minha condição mesmo não sendo minha culpa.
Têm coisas que não existem para serem ditas, só para existirem.
Certa vez estava andando pelo pátio quando um bonitão do terceiro ano científico, o Wendell, gritou no meu ouvido:
_ Saí da frente coisa preta! Olhei pra trás curioso para ver a cara de quem falou aquilo, mas rapidamente baixei a visão e saí apressado até o Banheiro.
O Banheiro sempre foi meu local preferido. Entrava numa cabine isolada, abaixava a tampa da privada, sentava e chorava, e chorava, e chorava tudo que queria despejar em forma de ódio nos outros garotos. Nem sei como ainda consigo chorar hoje em dia, como as lágrimas não secaram.
Sabe o barulho que se faz quando se chora num Banheiro;
Zoada de Azulejo.
Trimmmmmmmmmmm
Sinal toca, lavo o rosto, seco-o e volto para a sala como se nada tivesse acontecido.
O ódio passa o amor não. O ódio não me tira nada que eu não possa repor. Só me faz perder tempo.


O amor me deixa pequeno; consome-me. Sinto-me dissipando pouco a pouco. Fico cada pouco mais sozinho. Já não sei onde vou parar.


Eu esperava ser salvo por quem era pago para isso: os professores, diretores e inspetores de disciplina. Eles viam com frequência eu sendo açoitado, mas se faziam de cegos. Imagino o quanto deva ser difícil para eles também; somos todos humanos, uns mais fortes, outros mais fracos.
A criança pode usar a prerrogativa de sê-la para expor um adulto a uma situação vexatória. Para os adultos, aquele ambiente é seu ganha-pão.
Na última carteira da quinta fila da esquerda para direita, observo a professora Sandra começar a aula de português. Ela se veste como velha. Não que ela não seja, mas pra que carimbar. (Saia longa cor de terra, blusa verde-escuro, tipo verde lodo sabe?! sapatilhas de estudantes normalistas do final do século XIX e meias finas bege).
_ O que vocês entendem por advérbio? Olhem bem a palavra: Ad-vér-bio.
O enjoadinho da sala, um moleque desnutrido, que mais parece um anão de tão baixo, cabeça grande, pele morena clara, relógio yankee street no braço fino esquerdo, cabelos arrepiados e curtos, fala:
_ Eu acho que deve ser algo que antecede o verbo. Pelo nome: Ad-Vérbio...
_ Continue, Tiago. Continue o raciocínio. Antecede o verbo como?
A professora deu atenção ao Advérbio do Tiago. Eu senti uma inveja dele, daquela atenção toda. Não consegui saber o que era advérbio. Só entendo as coisas quando as vivo. Até quando terei que viver? Até o que posso aprender? Queria ser o Tiago naquele momento, mas ainda assim não vivi o advérbio, o que muda o verbo.
Por que essa cadela não vê em mim o que eu quero perguntar. Por que ela não sabe o que eu sinto. Será que tudo eu tenho de dizer. Eu só sou uma criança. Até se eu fosse um adulto, não diria algumas coisas. Qual o poder das palavras? O que deve valer é o que se é, ou o que se sente; ou o que está claro? A palavra não vem só. Vem com gestos, vem com a falta de gestos, vem com os olhos. Se eu não falo, mas faço todo o resto, então eu falo.
É uma desculpa cômoda sua espera pela dúvida proferida; basta olhar e a verá.
Eu não sou pago para isso, você sim. Minha mãe confia em você. Eu confio em você. Mas você me trai quando espera que eu pergunte. Você só quer o seu salário no fim do mês. Para mim você não é uma professora, é uma assalariada. Assalariada é profissão agora.
Griiiita! Grita comigo. Sacode-me. Faz-me ter vergonha. Eu quero aprender. Eu preciso aprender. Eu sei aqui, eu sei pouco a pouco, mas quando eu voltar amanhã eu não saberei mais nada. Olho profundamente nos olhos da professora, às vezes acho que nossos olhares se cruzam, mas quando a vejo falar da Lalá, percebo que ela não está prestando atenção em mim.
Minha mente funciona como um formigueiro, cujas trilhas até se cruzam, mas não findam num vão só.
Alguém me tira daqui, alguém me tira daqui, alguém me tira daqui.
Gritava afônico isto sem nem saber aonde queria ir. Na realidade, só queria sair dali, queria sair de mim. E como se faz isso? Não sei. Só sei que assim eu não conseguiria. Quero sair de mim para um lugar onde só se ache a mim.
Nem sei por que corri tanto com aquela lancheira azul assim que o sinal do intervalo tocou. Acho que queria que os outros trinta e sete pensassem que eu tinha algum encontro importantíssimo, ou algo inadiável a fazer. Na verdade queria era achar algum lugar escondido e que desse para avistar o pátio ou algum corredor, e sem ser avistado. Isto depois da boiada passar correndo pela rampa para se divertir no recreio.
A prova de português será logo na primeira aula após o intervalo. Qualquer tipo de avaliação mexe comigo. Fico zureta. Até parece que sou importante assim. Quando acabei de pensar nisto, já chegara à cabeceira da rampa. A porta que dá acesso à saída do pré-escolar ainda está aberta.
Entrei.
Escuro.
Ninguém.
Tomo a sprite com o sanduíche de pão de forma, queijo muçarela e apresuntado. O nervosismo esconde o sabor da primeira mordida. A boca mastiga, os olhos olham e a mente vaga. Penso em gente, no lanche, na prova e em quanto tempo falta para eu chegar a minha casa. Quero pôr tudo na boca, não quero que ninguém me veja rasgando pão aqui escondido.
A outra ponta do corredor da saída do Pré dava em uma porta – que ainda estava aberta – que dava nas escadas. Segui este caminho. Minha barriga deu umas roncadas que definitivamente não eram de fome. Quando fico ansioso das duas uma: ou cago ou vomito.
No primeiro andar tem o banheiro das turmas do segundo grau. Entrei na cabine, levantei a tampa do vaso, nem forrei as bordas com papel higiênico e sentei. Ali mesmo, enquanto o vômito ou o cocô não vinham, lanchei. Com calma agora, já que não pretendia sair dali antes do sinal voltar a tocar e a boiada fazer o caminho de volta à sala.
Segunda mordida e passos no banheiro. O dono dos passos tem uma voz rouca e grave.

_ Nossa, veio. Nada a ver o Charles não ficar com a Katianne da 6ª. C. Os dois são baixinhos.
_ É! Ela tá doidinha por ele. Ela é bonitinha. Os dois se combinam.
Realmente no recreio passado eu avistara a Ana Paula apresentando-os – vi pelos cobogós da rampa – mas não sabia que era para isso. Muito menos que ele não a queria”.
Pelo eco que fazia, a conversa vinha do mictório. Eu nunca usei o mictório. Não sei como alguém pode deixar que um colega veja seu pau ali, do nada.
Que loucura deve ser conversar mostrando o pau mole para outrem!

Passaporte
Menos um dia, sinal tocou, sem ter que esperar por ninguém eu rapidinho chego a casa e, à noite, a barriga ronca por Passaporte.
Passaporte é um vício meu. Um passaporte é uma refeição. É um pão de seda aberto na palma da mão, uma salsicha inteira e pré-cozida num molho vermelho, uma concha de carne moída temperada e molhadinha, salada de tomate e cebola bem picada, quem não a aprecia, quase não a sente – vinagrete. Por cima, ketchup e maionese seguidos pelo queijo ralado polvilhando o cume. Numa mordida às laterais, vem tudo e se misturam ainda na boca. Pôr mais, ou menos é exagero. Só o que está tá perfeito; já estou com água na boca.
Meu gato Údson
Quase no fim do meu passaporte, tirei uma nesga de salsicha e joguei no chão, para o meu gato. Ah! Eu já ia me esquecendo; eu tenho um gato de estimação.
Chego a minha casa e estranho não haver ninguém lá. Só meu pai, que abre a porta. Vou ao meu quarto e tiro aquela farda bege – cor de nada – do corpo. Nunca entendi aquela cor bege da farda. Não era escura demais para disfarçar poeira, nem clara demais para transmitir conforto.
Um cheiro de cuscuz me leva até a cozinha: é cuscuz com pedaços de banana e carne moída.
Sento-me à mesa e noto uns olhares em minha direção. Mesmo sem vê-los, noto-os, sinto-os.
Meu pai está na pia lavando pratos e olhando pra mim.
Achei estranho. – ele não é de encarar ninguém nos olhos –. Até pode olhar, mas por trás. Devia querer dizer várias coisas, julgar vários atos, contribuir com vários pitacos, mas só olhava por trás e pensava.
Aquilo me incomodou de um tanto que larguei o garfo e a faca e o encarei também. Afinal eu estava em casa. Nada de muito grave acontece em casa.
Ele se aproxima da mesa lentamente. Fico estático, esperando ele coordenar tudo. Só continuei olhando-o fixamente, ele disse:
_ Sua mãe e os meninos foram levar o Údson ao veterinário.
Desdenhando: _ Foi! e o que é que ele tem?
_ Sei lá, ele saiu bem mole, levaram ele numa caixa de papelão forrada com uma camisa sua.
Ele continuava olhando pra mim. Não sei se fui justo no meu julgamento, mas me pareceu que ele usou de sadismo para me fazer chorar. Ao invés, comi dois pratos de cuscuz e tomei dois copos de café. No finalzinho do último copo, fiz minha papa de leite ninho. É só cobrir o fundo do copo com leite e misturar ao pouco de café remanescente. Quando conseguir a consistência de uma papa, é só comer de colher. Uma delícia!
Na sala, assistindo à TV, escuto o barulho do portão abrindo. É mainha que chega com meus irmãos – incluindo o Bicho. Nos braços, traz minha mãe uma caixa de papelão. Despreocupado vou lá lentamente pegar o meu gato. Mas na caixa Údson está morto. Todos olham pra mim, como meu pai, querem me ver chorar.
Eu não choro na frente de ninguém, a não ser que não consiga segurar mesmo, que seja um motivo forte, avassalador. Mas morte! Uma mortezinha de nada. Já chorei a morte de tanta gente. Já imaginei a morte de quase todos da minha família, imaginava com detalhes e induzia o choro. Tentava pensar em algo para chorar escondido, mas só a morte não era um bom provocador. O sofrimento me abala. A morte não.
Eu que chorei por 30 minutos seguidos naquela tarde, não verti uma gota sequer diante da morte.
Quando me transporto a esse cenário, meu objetivo é gastar lágrimas. Ter uma razão para poder chorar em paz. Contudo gastava lágrimas sem provocá-las no banheiro do colégio, e meu gato Údson – que vida curta ele teve nesta história – não foi o bastante para nada. Acho que causei decepção em alguns.
Como diria Sylvia Plath “Colinas somem na brancura,
enquanto homens ou estrelas me observam desapontados comigo...”
Só quis saber as razões práticas praquilo ter acontecido: a causa; quem percebeu primeiro; a qual veterinário ele foi levado e que preço cobrou.
Umas horas sem o Údson é tempo de menos para provocar algum sentimento. Se ele tivesse fugido, fosse ao incerto, mas à morte! Essa é um prêmio certeiro para quem vai e para quem fica.
Acho até que sinto inveja dos que em minha mente morreram!
Cocô de pombo
Comecei a dormir, os pensamentos me seguindo. São meus inimigos; na cama, sozinho, eles estão comigo. Entro em desespero e quero poder gritar. Quando dou por falta de mim, já durmo. Mexo, mexo e suo. Parece que alguém enforca meu pescoço. Esperneio para todos os lados e levanto-me na direção do cume do mosquiteiro, pulando sobre o colchão, sobre o lastro de madeira da cama, quero gritar e não consigo, levo as mãos ao pescoço e só sinto as minhas próprias mãos lá. A zoada do lastro de madeira da cama acorda minha mãe ao lado que grita e desperta minha irmã mais velha. Quando a luz acende tudo passa, e agora sinto um forte azedo no esôfago. Não na boca, nem no estômago, só lá: no esôfago. Vou ao banheiro urinar, minha bexiga está cheia. Volto para cama sem ter conseguido expelir nenhuma gota sequer. Mas, quando deito, minha cama está molhada de xixi. Sobre o azedo no esôfago minha irmã diz: _ deve ser cocô de pombo. Uma amiga minha disse que um mirou e acertou bem dentro de sua boca aberta, e o gosto era assim; azedo.
A luz apaga e eu volto a dormir, já esgotado de pensamentos.
No escuro do meu quarto vejo algo como nuvens de um lado. Não temo o que está na minha frente, mesmo insólito, torna-se concreto já que está acontecendo. O que ainda não aconteceu na minha frente ainda não teve permissão para tanto. Disto eu amedronto-me. Pensamentos mais vagos puxam um sono pesado, acordo com o canto do galo e o cheiro de borracha da mamadeira roçando meus lábios; outro dia se fez. Menos um. Meio-dia logo estará aí, as manhãs passam que nem se sentem. É o melhor horário para praticar atividades monótonas. São horas mortas. Saí de casa já ansioso para voltar. Na mochila o caderno e os livros. No braço curvado, como que em meio abraço a si mesmo, o de matemática. A professora Tânia dará a primeira aula. Não me ficou claro se é na universidade ou na especialização que os docentes aprendem a introduzir aulas. Acho que são autodidatas nessa área.
Todas as Pestes do mundo
No quadro verde-lodo estava escrita a lição, e a professora Tânia, a baixinha, aconselhava seus alunos homens a tomarem cuidado com a Loira do Banheiro, causo da vez que intrigava os moradores da parte leste do sertão alagoano _ ela é uma loira vistosa que porta adereços dourados e prateados. Nos pés tamanco escarlate de salto alto. Exímia dançarina e encantadora nas palavras, só seu olhar já fala. Nos bordéis do interior, ela brilhava e provocava brigas. Todos dela querem uma nesguinha. Ela dança e rodopia seu vestido cor púrpura, vai até o fim com os mais importantes homens dali. Mas depois de retocar seu batom no espelho do banheiro, some. Deixando trêmulos os que chafurdaram naquela fonte. No espelho do estabelecimento, a frase: A Peste esteve aqui!
A elegância pode passar despercebida. A deselegância não.
Sob olhares atentos e estarrecidos das crianças, a professora não se intimida e continua a dá seu testemunho.
_ Têm pais de alunos que me indagam grosseiramente sobre meus apontamentos. Não posso só ensinar números, para muitos eles se tornarão inúteis. A palavra de Deus combina com tudo, com a Matemática não haveria de diferir. Estou diante de uma geração privilegiada. Já imaginaram presenciar o Alfa. O Ômega, pois.
_ Concordo com os seus pais que o livro do Apocalipse é o que mais desperta curiosidade. Na medida em que a leitura avança, nas horas em que a idade não acompanha, meus meninos não conseguem dormir. Têm pesadelos, fazem associações do escrito com sua realidade.
Ali o mal estava feito. Dizer o que não devemos fazer é nos dá escolhas. Se não as tivéssemos, não seria uma opção errar.
Assim que cheguei a casa procurei em silêncio uma bíblia de bolso que fora distribuída gratuitamente naquela mesma sala por missionários das Testemunhas de Jeová.
Achei, achei!
Nas minhas mãos está a Bíblia do Novo Testamento; cinza, pequena, capa gostosa de morder – é um tipo de papel acrescido de emborrachado. Dentro papel fino, cheiro de livro e letras miúdas.
Apocalipse, Apocalipse, Apocalipse... Achei! É o último, o fim. Meu coração dispara antes mesmo da primeira palavra. O começo e o fim da leitura são feitos em aproximadamente uma hora.
Literatura fascinante e ilustrativa. Da cadeira de balanço da sala caminho lentamente até o meu quarto, dali não sairia mais naquela noite. Meus pensamentos dão rasantes próximos uns dos outros, mas não se chocam. Tudo lá dentro é perfeito, porém não posso viver lá. Comparei-me a deus ali. O ódio retórico não é ruim; não leva o outro a nada e só faz bem a si.


Uma hora depois da vitamina de banana, pus os pés no chão e caminhei, limpando os olhos, até a sala. Não via ninguém. Liguei o Micro System preto da estante da sala e sentei no sofá (não pude deixar de perceber o Livro dos Espíritos, descansando dentro de sua capa dura, bem ali a minha frente. Era o livro de minha avó). Logo após a propaganda do café Emecê, o locutor anuncia o top 10 do dia. Ai, Ai, Ai! Aquela música vencedora – Fala só de amor, um reggae de Edson Gomes – entrou em mim e criou vida. Foi dela que saiu o imaginário adormecido na madrugada.
Uhhhhhh apapêaaaaa uhhhhhhh
Até mesmo um guerreiro
(Tem o seu momento)
Pra
Falar do seu amor
(Do seu sentimento)
E agora...
(Fala só de amor)
Todo mundo tem um amor!
(Fala só de amor)
Todo mundo tem um amor, yeah!
(Fala só de amor)
Olha todo mundo tem um amor, yeah!
(Fala só de amor)
E eu também tenho o meu amor, "né"?
Por mais forte que seja o homem
(Que seja o homem)
Sempre chega o momento
(Sempre chega o)
De
Cair diante de
(Um sentimento)
Sei que a água, a água é mole
(E a pedra é dura)
Eu sei que a água, a água é mole
(E a pedra é dura)
Mas, já fala o ditado
(Tanto bate até que fura)
Fui à área esperar a volta de alguém da família. Temendo o nada, lutava em vão para esvaziar minha mente.
Desejo sem Reparação
Meu primo foi passar um final de semana lá em casa, como sempre fazia. Minha mãe achava que ele podia fazer as vezes de um irmão da minha idade, já que o que eu tenho é uma criança. Ele foi criado em uma família evangélica e cheia de normas duras, no entanto era de uma perspicácia e uma sabedoria para aproveitar cada fase da vida que me deixava irritado.
Tinha tesão nele.
Sempre quis ser igual a ele.
Esse desejo só se confirmava com as comparações que sofria. Quando estava lá em casa, ele sempre queria sair, conhecer garotos da nossa idade. Era o queridinho dos adultos e sabia se defender muito bem das crianças, com as mãos e as palavras.
Em 26 de setembro, onde se distribui doces no dia de Cosme e Damião, estávamos na casa da minha tia, eu, mainha e algumas amigas delas. Com a porta aberta como sempre ficavam nossas portas naqueles anos de calmaria, vimos a gritaria de algumas crianças correndo, indo atrás de doces. Meu primo apressou-se a segui-los e enquanto corria para a porta falou:
_ Vamos, Marcko, vamos!
_ Não, não vou não. Vou ficar aqui mesmo. Disse aos adultos que estavam por lá, pois meu primo, a essa altura, já estava com os bolsos cheios de doce.
Minha mãe foi a primeira a opinar:
_ Vai lá menino, acompanha seu primo. Se fosse para você ir sozinho, mas com seu primo não tem perigo.
Minha tia a ajudou:
_ Vai rapaz, oxente. Vai correr com as crianças.
Fui salvo pela amiga delas, logo a mais saidinha.
_ Deixa o menino, oxente. Vai querer que ele seja igual ao primo. As pessoas são diferentes memo. O primo é atirado, pra frente, e o marquinho é tímido.
Eu fiquei ali, emudecido. Escutando todos decidindo sobre a minha vida e eu só querendo sumir.
Sempre me murcho para passar despercebido em todos os lugares, mas com frequência essa tática falha. Só queria a segurança do meu Quarto nessas horas.
No meu Quarto eu me sentia seguro. Era lá que eu fingia dormir e no meio da noite minha mão parecia ter vida própria. Soltava até a altura do pênis dele com a palma da mão virada para cima. Assim, quando ele virava-se, encaixava certinho bem no meio na minha mão. Enchendo-a de pênis. Aquilo me dava o maior tesão. Amanhecia todo melado e por noites isso se repetia.
Ele sempre teve o sono pesado. Numa noite eu não resisti e, já possuindo uma paixão destrutiva, pus-me em cima do seu peitoral como uma esposa faria com seu marido durante a noite.
Não sei o que passou pela minha cabeça. Como não previ que ele ia sentir meu peso? Afinal, era obeso. Alto e gordo. Foi dito e feito. Ele acordou assustado e olhou nos fundos dos meus olhos para saber se eu estava ou não acordado. Uma fração de segundos decorreu entre ele me jogar para o outro lado da cama, olhar nos meus olhos e eu fechá-los assustado.
Não tinha como ninguém permanecer dormindo com o chega pra lá que ele me deu, mesmo assim segui fingindo estar dormindo e roncando.
Na realidade, naquela noite não dormi nada. Só pensava que o dia ia raiar e eu teria que encará-lo pela manhã. E se ele contasse à minha mãe? Se contasse aos meus irmãos? O que eu faria?
Não preguei os olhos naquela noite, vi o dia clarear da janela do meu quarto. Senti quando ele levantou, foi logo depois que a minha mãe trouxe meu gogó na mamadeira. Era um sábado, todos estavam em casa. Lá pelas onze da manhã eu levantei meio trêmulo e tentando disfarçar meu nervosismo. Naquela manhã, não olhei nos olhos do meu primo. Tentei ficar à vontade pela casa e, como não ouvi nenhum comentário, lá pelas 16h desencanei e relaxei.
A noite caia e quando chegou a hora de voltarmos a dormir, meu primo arruma o sofá com lençol e travesseiro. Minha mãe então pergunta:
_ Por que vai ficar aí, menino?
_ Vou dormir aqui mesmo, porque o Marcko se mexe muito à noite e acaba me chutando.
Minha mãe retruca:
_ Mesmo com duas camas, como pode?
Só ouvi um silêncio. Embranqueci e acho que minha mãe não quis mais perguntar nem pensar no assunto.
Fiquei pálido, suando, trêmulo, mas como já estava deitado, lá mesmo fiquei. Só que agora, com as duas camas livres pra mim. Ainda assim demorei a pegar no sono.
Quando o dia amanheceu, minha mente começou a esmiuçar pensamentos.
A rua para mim só se ilustrava pelo caminho da escola e os locais onde mainha me levava. Companhia masculina para mim se resumia ao meu pai, meu irmão e meu primo. Aquele tesão incontrolável que sentia por homens se personificava no meu primo. Homem para mim, até meus 14 anos, resumia-se nele.
Pensei metodicamente em assassiná-lo. Matando-o eu me livraria dessa prisão sexual em que me encontrava. Seria dali pra frente uma criança normal. Dali em diante me interessaria por garotas e seria o foco da família.
Durante um mês, arquitetei um plano cuidadoso. Usando referências de filmes a que assistira. Como a Lenda de Billie Jean, que nada tem a ver com a música de Michael Jackson, tendo mais com Michael Kohlloaas, o rebelde.
Disse Heinrich Von Kleist:
O mundo decerto viria a abençoar-lhe a memória se não tivesse acontecido ele exagerar numa das suas virtudes: O sentimento inato da justiça transformou-o num salteador e num assassino”.
Meu vizinho de porta é policial civil. Eu já tinha o ouvido falar que mantinha uma arma carregada no armário de sua cozinha.
A vizinhança da rua combinava um grande amigo-secreto para comemorar o dia das crianças, 12 de outubro.
Esse meu vizinho policial e bonitão adorava participar das festinhas de adolescentes que fazíamos. Ele tem duas filhas, uma com sete e outra com 13 anos.
Fizemos a primeira reunião do assalto na porta da casa dele, ele apressou-se em dizer que, se participasse, daria um ótimo presente. Com essa retórica, ele entrou no nosso amigo-secreto.
No dia do sorteio ele nos contou uma história que ficou latejando na minha cabeça:
Assistia aos trapalhões quando vi na chamada que o grupo Dominó ia cantar no final do programa.
Gosto da forma como eles cantam e dançam, só de vê-los dançando e cantando. Fez questão de frisar.
Gravou a apresentação em seu videocassete e depois que todos foram dormir ele, que sofria de insônia, assistiu aos garotos dançando repetidamente.
Lá pela 01h da madrugada, escutou um barulho vindo do seu quintal. Correu para averiguar, mas antes de abrir a janela do portão que dava no quintal, abriu a gaveta do armário da cozinha e pegou sua arma.
Quando olhou na escuridão do quintal, viu um vulto pulando seu muro para o quintal vizinho. Era um garoto magrelo – e desarmado, presumiu –. Meu vizinho ainda efetuou um disparo, mas o tiro parou no muro da sua casa.
Todos nós ficamos paralisados com aquela história. Ele sem dúvida era o herói da garotada.
Faltavam 45 dias para a festa se realizar. Pensei, vou furtar a arma do meu vizinho policial no dia da festa. Matarei meu primo com um tiro certeiro na cabeça.
Na minha mente, já estava tudo planejado. Só a ansiedade não era esperada. Daquele dia em diante ela seria companheira inseparável.
Chega o grande dia. Todos vão comparecendo aos pouco, munidos de um pratinho de doce ou salgado e com o presente debaixo do braço. Aglomeram-se na sala de estar, a sala estava enfeitada com bexigas brancas e rosas e com os sofás encostados nos cantos. Um disco do balão mágico encarregava-se da animação. Só esbocei algum tipo de interação quando ouvi P.R. Você na radiola.
A esposa do policial fez as vezes de garçonete, servia guloseimas à vontade.
_ E agora você Marcko, qual o seu amigo secreto. Diz o policial, fazendo o papel de mestre de cerimônia da brincadeira.
_ Meu amigo secreto é o herói do bairro...
Todos em coro:
_ Ahhhhhhhhhhhhhhhh
_ Oh, bestão! Assim fica fácil adivinhar. Disse minha irmã mais velha.
_ Quem é o meu amigo secreto?
Todos em uníssono gritam o nome do anfitrião.
Logo, a sala fica repleta de gente para conferir o que ele havia ganho e, principalmente, o que iria presentear.
Ele abriu o presente e todos aplaudiram o perfume Gelu's que mainha comprou na Casa Vieira no centro.
Logo todas as atenções se voltaram para o pacote que ele carregava nas mãos. Quem seria o sortudo que iria recebê-lo?
Aquela era minha chance. Fui caminhando em direção à cozinha, mas atento aos sons vindos da sala.
_ Meu amigo secreto é uma menina. É uma menina linda e grandona.
_ Ahhh! Tá difícil. Conta mais.
_ Ela é minha vizinha.
Como no lado esquerdo da sua casa havia uma oficina, a amiga secreta dele só podia ser minha irmã mais velha.
Com a arma na sacola escura onde levei meu presente, corri até a sala a tempo de ver minha irmã chorando ao ganhar sua primeira caixinha de música.
Chegando a casa, guardei a arma em cima do meu guarda-roupa, entre mochilas e caixas de sapato. Fui até a sala e comecei a comentar sobre meu presente, um ioiô azul metálico, este brinquedo era febre naquele ano.
As férias foram se acabando sem muitas novidades. Programas de índio como ir à praia do Mirante da Sereia, levando almoço de casa e enfrentando superlotação dos ônibus na volta, já era algo ao qual estava adaptado.
Primeiro de agosto, uma segunda-feira, começava ali o segundo semestre no Colégio de São José. Aquele seria o mês do assassinato. A agitação da volta às aulas encobriria o assassinato.
Comecei a convencer minha mãe a trazer meu primo para passar um final de semana lá em casa. Queria que fosse naquele mês, mas a data eu não tinha ao certo. Comprava fichas e lhe ligava do orelhão do cartório para o seu trabalho.
Com o semestre letivo voltavam também minhas aulas de inglês. Já cursava o Basic-one.
Eu mesmo tentava me enganar que a pé era mais rápido. Saía mais cedo da aula de inglês, na porta do Centro Cultural, sustentava minha pasta azul de plástico duro com meus livros dentro no braço direito dobrado.
Ia devagarzinho por caminhos escuros na direção lá de casa. Logo na esquina do curso dou de cara com uma avenida em frente ao HiperBompreço do centro. Lá os carros sobem em sentido único e fui andando lentamente, acompanhando-os.
Mesmo sem olhar pra trás, pude perceber que havia um carro mais lento que eu a me seguir. Naquela hora não eram muitos os carros que subiam pela avenida. Meu coração bateu acelerado, mas não entendia aquilo como medo, meu coração bate acelerado por quase tudo. Até por desejo. Se saio de casa com a possibilidade de um encontro sexual, lá estão eles; meu coração e meu pênis, a pulsar.
Não tinha a intenção de entrar em carro algum, andava devagar para não suar. O carro enfileirou-se ao meu lado e seu motorista: branco, até simpático, e um pouco magro; perguntou se eu aceitaria uma carona. Nessas horas, as de desejo patente, o medo é suprimido. Quase não existe. Entrei no carro e me entreguei. Não queria saber se ele realmente ia me levar em casa, só queria estar ali, ao lado de um homem, sentir o cheiro dele, a forma como ele passa a marcha...
É inútil citar que meu pau estava duro a essa altura. E todo babado.
Algumas perguntas quebraram o gelo:
_ Quantos anos você tem, garoto?
_ 14 anos
_ Olha! É um garotão ainda.
Em nenhum momento ele perguntou onde eu moro. Dei por falta da pergunta, mas não quis lembrá-lo. Não à minha casa era o destino aonde eu esperava chegar.
O carro andando, eu olhando só para frente, pelo para-brisa, senti uma mão miúda sobre minha coxa esquerda. Gelei, mas gostei. Ele então diz _ Vamos parar um pouquinho por aqui. Eu só dou com a cabeça que sim e paramos debaixo de uma árvore, numa ruela deserta e escura do centro.
O poste logo detrás da árvore ainda tentava iluminar algo com sua luz amarelada e fraca. Ele passou a mão miúda sobre meu pênis, sobre a calça, e eu palpitava de prazer só com aquilo. Virei um pouco a cabeça para fitá-lo e percebi uns buracos em sua cara que não avistara de fora do carro. Pareciam cicatrizes de espinha. Ele, que deveria ter seus 35 anos à primeira mirada, tomara a si uns 5 anos a mais pelos buracos na cara.
Quando voltei o olhar em direção ao meu pau, pude ver já suas duas mãos abrindo o fechecler da minha calça. Quando meu pau negro saiu da cueca, estava duro e com a glande visivelmente envolta de sêmen. O cheiro rapidamente tomou conta do carro e eu estava ali; parado, esperando que ele limpasse aquilo tudo com sua boca. Não precisei esperar muito e uma sensação divina percorria o meu corpo. Uma boca quente de homem, que podia até ser casado, estava sugando meu pau. A cada engolida que ele dava, uma sensação melhor que a última que julgara insubstituível. O transe de prazer fez sair gemidos da minha boca e meus olhos oscilavam entre abertos e fechados.
Uma movimentação logo à frente nos cortou a atenção. Era o vigia de uma loja se esticando todo para ver melhor o que estava claro que estava acontecendo dentro do carro.
Eu permaneci imóvel. E agora, em vez de olhar para baixo, olhava para frente, para os olhos do vigia. Já o motorista... este se assustou sobremaneira e, passando a mão em volta da boca, só informou _ Vamos embora daqui.
O vigia presente ali é apenas mais uma segurança para mim. Eu sou criança, em qualquer contingência eu sou quem está com a razão.
O motorista guia o carro em alta velocidade e diz ter ido, naquela tarde, mostrar um terreno no bairro do Jacintinho. Ele garantiu que a vizinhança é quase inexistente e o lugar é seguro.
Não demoraram 15 minutos e estávamos no tal terreno. O local era mais escuro que a ruela escura, mas realmente nem sinal de vigias por perto. Ele me mandou sair do carro e ficou sentado – com o corpo pra fora e a porta do carro aberta. Eu finquei-me à frente dele e olhava a paisagem negra da noite só iluminada por estrelas.
Ele me chupava freneticamente; não sentia dente, não sentia nada. Só prazer!
Estava com medo de não aguentar e ejacular dentro da boca dele e ele, iracundo, deixasse-me ali, a pé.
Tentava pensar em outras coisas para prolongar mais aquela sensação. Foi quando ele parou de me chupar. Afastei-me para ver o que eu havia feito de errado, no entanto, só o que pude ver foi o motorista com as calças abaixadas até os calcanhares, de costas para mim e com uma camisinha aberta na mão esquerda dizendo _ Me come vai garoto, me come vai!
Meio ressabiado, pus a camisinha no meu pau e tateei a bunda do motorista a procura do cu. Nunca havia comido um cu antes. Em verdade, nunca comera nada antes. As costas dele era branca e a bunda macia, sem pelo algum. Ele percebeu minha inexperiência e com a mão esquerda guiava meu pênis enquanto a direita se revezava entre a boca e a lubrificação do seu cu.
Meu pau entrou fácil na bunda do motorista. Não imaginava que aquilo podia trazer tanto prazer. A cada bombada que eu dava, eu era tomado por um ódio de estar gostando daquilo tudo. Vi-me cego, bombando o cu do motorista com toda a força que eu conseguia reunir. O gozo veio com um prazer que me deu a ilusão de subir dois dedos do chão.
Saí desse mundo naquele instante. Ele gozou em seguida.
Depois de limpos por um papel higiênico que ele mantinha no porta-luvas, vinte minutos depois estava na Praça das Graças; a dois quarteirões de casa. Despedi-me com um aperto de mão e recebi elogios pelo meu desempenho. Contudo, todo regozijo do mundo não disfarçaria minha melancolia, minha raiva de mim mesmo. Daquela praça até o meu Quarto, a cabeça insistia em ficar baixa. A voz não saía. Sentia-me sujo, derrotado: um traidor. Tomei banho e fui dormir.
Absorto na cama, os pensamentos não me deixam em paz. Uma mistura de remorso e fraqueza me toma. Só com o juramento para mim mesmo e para deus de que eu nunca mais repetiria isso é que o sono finalmente vem. Durmo.
Vi então que o problema não estava com meu primo e sim comigo. Tive contato com a depressão pela primeira vez na minha vida. Queria ter concretizado o crime e acabado com tudo aquilo.
Não fazia mais sentido matar meu primo, a não ser que matasse todos os homens por quem sentisse desejo e, naquela altura, já era ao menos um novo a cada dia.
A consciência de que eu não tenho controle sobre meu corpo, sobre minha mente, foi me desesperando.
Retraía-me cada vez mais e mais para que minha família e colegas de escola não percebessem nada.
Pensei em jogar aquela arma, àquela altura um fardo, mas algo me pedia para mantê-la. Pu-la em uma mala onde guardava roupas velhas e por meses esqueci que ela estava lá.
Obnubilado
Na mesa da cozinha, como em várias madrugadas acontecia, eu e mainha sentávamos e jogávamos conversa fora. Hora sobre o dia que acabara de passar, hora sobre o futuro que estava próximo a chegar.
A mesa ainda suja de migalhas de pão francês, a toalha de plástico com alguns queimados das panelas quentes, os mosquitos não deixando a gente em paz. Além do zumbido insuportável, ainda picavam-nos como que nós fôssemos seu café da noite. Conformados, continuávamos ali. Cansados do marasmo do dia, e do mormaço também. O sol quente da cidade soma-se às atividades diárias e derrota qualquer lutador nas horas da madrugada. Um vinho barato sempre está na geladeira para essas horas. É Quinta do Morgado. Tomamo-lo em copo americano.
_ Tu viu a tia Verônica? Ela tava meio triste, por que hein?
_ Oxe, menino, para com isso. Deixa tua tia em paz. Ela tem os problemas dela.
_ Agora, e não pode falar dela não, é?
_ Ela acabou outro namoro há pouco tempo.
_ Nossa, de novo. Depois de você ter roubado o traste dela, ela nunca mais conseguiu ficar com ninguém.
_ Não é assim, meu filho. Lá vem o outro com esse assunto de novo.
_ Agora! Por que você não gosta de falar sobre isso. Não fez, agora aguenta.
_ Ai, Ai meu Deus. Vamos mudar de assunto. E o colégio como está?
_ E os impostos, como estão? Tudo em dia. Água, Luz, IPTU?
_ Ra, Rai!
_ Não é pra falar em obrigações. Então, toma!
_ Ah, meu filho. Só você mesmo.
_ Mãe, quando é que tu vai vender aquela casa velha e sair do aluguel, hein? Só tu mesmo pra ter uma casa parada e pagar aluguel. Já destruímos três casas de aluguel e essa aqui já tá caindo aos pedaços.
_ Eu mesmo, não. A casa que era do meu pai. Onde vocês nasceram. Eu não vou vender não. O que a gente tem não pode vender.
_ Mas, você venderia e compraria outra. Não pagaria mais aluguel.
_ Mas do jeito que ela tá, não vai dá muito dinheiro não. Teria que fazer uma reforma grande.
_ Ai, Ai. Tu arrumas dificuldade em tudo, Né.
_ Peste! Quanto mosquito. Vala meu Deus.
_ O meu sonho era morar em uma casa que não tivesse nenhum mosquito. Imagina poder dormir sem mosquiteiro, sem lençol, com a janela aberta. Nossa, que sonho!
_ Eu já tô acostumada, mas hoje tá demais. Vala meu Deus!
Comecei a querer fugir de mim: _ Ah mainha, vamos sair daqui. Tentar viver em outro estado. Em outra casa. Você não vê que nada dá certo aqui. Viver essa vidinha sem nada acontecer. Daqui eu posso ver todo o meu futuro, então para que viver. Vamos mãe!
Meu corpo tremia, em minha mente chegavam pensamentos de várias correntes. Nada se juntava, só meu olhar falava agora. Espero a resposta até que minha mãe abre a boca.
Sim meu filho, eu entendo você. Eu consigo te compreender e vivo tudo isso também. Vamos mudar até acharmos o melhor para nós todos. Se um for assim, todos virão por aqui”.
Era isso que eu queria ter ouvido. Mas _ Meu filho, por que seus irmãos não sentem o mesmo então. Por que eles não têm o mesmo desespero?
Ela me olhou docemente, pegou seu saco de bóbis, e foi acabar de pô-los sentada na cadeira de balanço da sala, assistindo à TV.
Eu acho mesmo que o que me falta é vida. Trancar-se me protege do lá fora na medida em que me entregam a mim. Não sei o que é mais mortal. Daqui tenho coragem, sou o senhor; o senhorio. Mandador e subserviente. Só não faço o que eu quero, pois o que eu quero não está aqui. Se estivesse, queria poder dividir. Eu não me basto, em vão pensar assim. Espero por seguidos milagres, sendo o maior deles eu continuar esperando. Tento inverter essa situação, sem sucesso. Sair desse ciclo seria o começo e o fim pra mim. O fim e o meio. O tudo inútil. Mas não estaria mais sozinho.
E tudo não importa. O amor que vem não importa se eu não estou pronto para recebê-lo.
Eu me maltrato para atingir você. Um dia eu li o conto dO homem que dormia para não viver. Este conto dizia assim...


O homem que dormia para não viver


Naquela manhã eu não queria acordar. Não queria ver o mundo. Quando a minha mente despertou, neguei-me a abrir os olhos. Cheio de compromissos chatos; à noite minha mãe ligaria, os bons-dias que teria de dar me massacrariam. Não, não quero abrir os olhos. Não, não vou abri-los. Passar os dias nesta cama me poupará do mundo. Mais que isto: poupará o mundo de mim.
Dormir é o mais próximo da morte que eu consigo.
Numa kitnet toda branca, numa cama conjugada forrada com uma colcha florida e clara, na tv ligada na tela azul do modo AV, nos três travesseiros com fronhas desiguais, na barba por fazer, na ressaca de beber sozinho em casa – capeta – ouvindo fitas-cassetes piratas de um novo jazz; despertaria para mais uma semana de trabalho na secretaria de uma prefeiturazinha, numa sala com mais dois colegas de trabalho, num computador com recursos limitados.
NÃO!
Não vou tentar nem abrir os olhos. A claridade me atirará para realidade, mas eu resolvi que não vou mais acordar. A fome, a dor, as necessidades, o telefone, o trabalho e os conhecidos serão resolvidos em sonho.
Num puff branco quadrado, cartas de suicidas; na tv, o azul da tecla AV continua a azular todo o quarto; sobre a cama, meu corpo estendido – pelos ouriçam, olhos vidram – só os braços se mexem.
Estico o esquerdo e cato no puff folhas de papel a4 com as cartas impressas. Leio-as lentamente como que degustasse palavras. A leitura funciona como um sonífero para mim. Escolhi as cartas de suicidas não por nada em especial, só por estarem sempre ali, à mão. Em verdade, gosto do que leva mais de uma leitura para se compreender, mas não a abro mão, mesmo que mais de duas tenha que ler.
Passei todo o domingo comendo coração de galinha para ver se algum amor entrava em mim. Mas eu bebia. Acho que o álcool cortou o efeito.
Tudo somado, os olhos de estatelados passam a lassos, o corpo já estava parado, os olhos a pestanejar, a nublação invade minh'alma. Durmo. e voo por entre árvores e bem alto. É tudo tão feérico aqui de cima. Só seres vivos – filosoficamente falando – a vida é só isso mesmo, para se existir? não vejo humano em plano aberto algum. Só verde, marrom e roxo. e o nada. Penso em nada; só voo. Braços abertos ou fechados. Nada bate em mim, não encosto em nada, não sinto nada. Sou o NADA ali. Aqui não se há noção de tempo: é tudo metafísica.
Das noites que precisava acordar, só me recordo do balançar das pernas. Um autoninar-se desconcertante.
Vou ao encontro de Aurora, vejo-a do alto guardando-me, irrompo os portais e pormenorizo meu dia. Enfatizo os corações de galinha – deixo o capeta latente, sei que ela não gosta que beba – ela diz que sente minha falta, a falta de meu abraço, ela é real eu; obnubilado.
Vou falar com Cássio, meu colega de trabalho. Ele não está, mas deixo recado, sentado, no cominho que ele o fará. ‘NÃO VOU MAIS ACORDAR, SEGUNDA SUGURA AS PONTAS LÁ!’ o Cássio é tão resmungão, irá reclamar tanto ter que acabar os relatórios circunstanciados sozinho, que quando o vejo bocejar, já o imagino iracundo a me maledizer. À sua espera, malocado, um abraço é deixado.
Na volta ao alto, converso com o tio Zécarlos, ele diz que coisas boas virão, mas que ainda não são os números da Mega que me prometera antes de partir. Pergunto o porquê, ele diz: não depende só de mim. Entendo, desentendendo. Rio-me, e voo-me.
O vento daqui é brisa, é nem frio nem quente: é como se o mar estivesse bem a nossa frente. Não resisto e canto. Baixo, claro, pois qualquer passo em falso eu caio.
Como aqui não tenho dinheiro, não pago. Mas me justifico aos credores que encontro no caminho; pelo-sim-pelo-não.
Dentro do sonho sonhei que tinha acordado, quando abri os olhos, estava em casa. Tinham se passado 27 dias e 27 noites. Acordei atordoado, e estonteado – agora como maravilhado – no espelho do meu quarto, pude ver uma marca marrom de batom em minha bochecha esquerda.
_ desde quando estás aqui?
_ desde o segundo dia, meu filho.
Minha mãe – Dona Aurora – não saiu dali de junto de mim desde que a ligação de telefone não atendera.
Não quero viver. Não gosto. Durmo muito, sinto culpa ao acordar, por ter dormido muito. Dormir é o mais próximo da morte que eu consigo sentir. Viver!
São todas sensações. Todas as sensações. Às vezes eu queria abrir os olhos e ver o que estava acontecendo, mas nem pra isso eu presto.
Posto assim aqui, isto parece até mentira.
Antes fosse.
Tudo aconteceu.
Só a mãe que não era a minha.






Enquanto eu estava dormindo
Eu achava que tu estavas dormindo e fiz tudo aquilo. Inocente, em minha mente
mal cabia teu sorriso.
Vi todos os teus lados, toquei teu corpo frio, – quero te balançar.
Acorda! Já chega desta brincadeira.
Não me faças chorar. Mais.
Ando meio que cambaleando pelos cantos do meu quarto que hoje para sempre é teu.
Vou chamar a tua mãe, eu já não aguento mais.
Uma das primeiras mortes
Eu como um espécime do ser humano e completo, tenho o mundo inteiro para mim. Meu mundo é diferente do seu, do mundo da minha mãe, do mundo dos meus irmãos, do meu irmão gêmeo, caso o tivesse.
Os conhecimentos adquiridos, as experiências que agrego, em nada mudam minha essência. Meus membros são controlados pela minha mente. Só não sei dizer como se dá isso fisiologicamente, mas tem algo falando comigo vindo da região da cabeça. Outras partes julgam, contestam, mas em vão.
É difícil lidar com uma situação de violência, humilhação, preconceito. Regras claras não foram traçadas. Espera-se que cada um saiba se defender ou, caso não, procure ajuda, grite por socorro.
Se eu pensei nisso? _ Sim, eu pensei sim, mas minha mente analisou todas as possibilidades. Nenhuma resolveria de vez o problema. Meu problema é meu. Ele está comigo.
Ok. Minha mente vai chorando até a sala do inspetor disciplinar e relata que é constantemente exposta ao ridículo com chacotas e apelidos pejorativos. Somam-se a isso agressões físicas: empurrões na rampa, nos corredores, no pátio. Cuspe no rosto quando o professor não está olhando. Humilhações sistemáticas e com testemunhas oculares. Preconceito com menosprezo pelo fato de eu ser negro. Usando comparações com lixo, sujeira, porcos; Desprezo. Não consigo fazer parte de nenhum grupo: ninguém me chama para brincar ou conversar. Só faço trabalho em grupo com a intervenção da professora. Não consigo falar, expor minhas opiniões. As tenho todas formuladas na minha mente, mas ao primeiro obstáculo as recolho, me recolho, viro insignificante.
Só minha mente vive, eu sobrevivo, esperando o dia em que tudo isso acabará.
Aí ele me olha, com meus 1,75 e 80 kg. Um garoto negro, forte, gorducho e com o rosto apático.
_ Por que você não desconta? Por que não bate também?
Eu até acho que tenho condições de descontar, tenho o braço forte, mas não quero fazê-lo. Não tenho raiva deles, não sei explicar por quê. Eles parecem ser normais, eu que não sou. Eu queria é que eles nunca fossem assim. Queria que nunca desejassem o mal pra mim, que os meus colegas só quisessem brincar, conversar. Nada de brigas e xingamentos. Se eles são assim não é culpa deles.
Não sei de quem é a culpa.
Tenho minhas desconfianças.
Isso tudo pode ser culpa sua, pode ser culpa dos professores, ser culpa dos pais, meus e deles. Mas e se você não souber o que fazer? Se você só for uma criança crescida? Você pode ter passado por tudo isso quando criança. Agora que parecia tudo ter acabado, eu chego aqui na sua frente e te exponho a essa realidade escondida. À minha realidade.
Justifico meu ódio pelo meu amor. Amo sem motivo, amo por você ser você. Por que não odiar pela mesma razão. O ódio pode ser ideologia. Uma desculpa tola para seguir. Às vezes o amor não, o ódio sim. Só odiar não é ruim. Só odiar não fará mal nem a ti, nem a mim. Se eu odiar em silêncio, pode. Aqui comigo dar-me até mais força. Fico empenhado no meu ódio. Luto para conseguir executá-lo e já penso no depois. Organizo a minha vida em torno disso. No entanto, faço tudo pelo meu ódio, só não o pratico
Minha mente está confusa, não sei se você poderá me ajudar. É só te olhar aqui na minha frente, vejo um pai de família que estava desempregado e foi indicado por alguém, com quem toma cerveja nos fins de semana. Esse seu amigo conhece a professora deste colégio e tem afinidade com a diretora. Só vejo um contracheque que fala e que paga contas.
Você conseguiu um emprego para manter a disciplina na escola. É só evitar as brigas, manter a ordem nos corredores. É só falar alto e em tom imperativo para conseguir o respeito dos alunos. São muitos alunos.
Eu tenho a minha mente. Na verdade ela me tem. Assim são 400 alunos no primeiro grau que estudam à tarde e 400 mentes. São muitos indivíduos, juntos e separados.
Fim do mês está chegando e você vai receber o seu salário. Vai fazer uma feira no Supermercado Bompreço. Sua esposa está feliz por você estar empregado. Seus filhos estão orgulhosos do paizão trabalhando em um grande colégio.
Seu sonho é obter desconto nas caras mensalidades. Você quer que seus filhos estudem aqui.
E agora eu aqui na sua frente. Você deve estar se perguntando como eu posso ter coragem de expor esses sentimentos. Certos sentimentos não se mostram. Cada vez mais quase não o consigo enxergar por detrás do birô. Você se empequenece.
Você convoca o garoto que me chamou de coisa preta. Na realidade um rapaz. Ele tem 17 anos e já jogou futebol com você na praia de Ponta-Verde.
Entre sorrisos tímidos no canto da boca, eu escuto um pedido de desculpas e um aperto de mão. Meu corpo gela, um contato amistoso é incomum.
Vamos nos falar por mais tempo, vamos expor mais. Para resolver os problemas com as crianças, os pais são chamados. Eles têm que arrumar um tempinho no trabalho e, já atrasados, aparecem na sala preocupados.
_ O que aconteceu?
Olham para mim dos pés a cabeça. Eu olho para cima e quero chorar. Você relata os fatos.
_ Seu filho está empurrando o Marcko e chamando-o de lixo.
A mãe faz cara de surpresa e diz ao filho:
_ O que é isso meu filho, nós todos somos iguais. Ele também é seu colega. Vá lá e dê um abraço nele.
Meu sangue gela. Sinto um frio de dentro para fora no meu corpo.
Um abraço e tudo resolvido. Volto para casa.
Naquela semana os professores falam sobre preconceito e sobre violência na escola. Sempre durante as aulas e de uma forma pedagógica. Eles não sabem aprofundar. Tem coisas que são melhores escondidas. Todos os alunos prestam atenção e concordam, não tem como não concordar. São tácitas demais.


TRIMMM TRIMMM TRIMMM


Toca o sinal. Chegou a hora do recreio. Nada mudou.
Não, eu não vou me expor ao ridículo. Aqui por detrás desta janela está bom. Aqui está ótimo. Minha mente não quer mudar. Meu corpo vai esperar. Minha mente queria que nunca tivesse de ser assim.
Como?!
Como?
Como o quê?
Você quer respostas? viva e deixe sofrer. Você não sabe resolver.
Você pensa? você sabe o que é certo e errado, afinal, é já um adulto.
Abrace-me você, já que você sabe. Fique comigo você, já que você me entende. Venha você então lanchar comigo, já que sente a comiseração.
_ EU NÃO SEI O QUE FAZER!
e... não fui eu quem gritou isso.
A Queimada [Lêdo Ivo] ou Dos Pais de Wendell
No começo do ano, Sérgio Chevalier Martin acordou com um cheiro forte de queimado e muita fumaça vinda de sua garagem. Desceu coleando as escadas, de pijamas ainda, de traços deitados e marrons, como tudo naquela casa. Quando abriu uma das várias janelinhas da porta da sala que dava na garagem, avistou seu Alfa Romeo branco em chamas, sua garagem e a área descoberta tomadas de fumaça.
A rua estava tomada de gente, seus olhos tomados de dúvida e a cabeça de Frederico, o Fred, tomada de ódio.
Para se entender este aparte na Zoada vamos à graduação em direito em plena ditadura militar no Recife.
Filho de diplomatas franceses falidos, ganhou uma bolsa de estudos com já 20 anos – antes se preocupava em fumar maconha e assistir a séries americanas – cursou o bacharelado e passou no exame da ordem. Chegou a levar o resultado para comemorar com seus amigos que não acabaram a graduação por estarem intercalando-se entre presos e fugindo pelo e do regime.
Com uma placa de metal sabre a porta e indicações de amigos do pai, ligados ao governo, logo criou sua cartela de clientes, muitos do meio político. Da faculdade só restou-lhe a Strella e, com uma bela casa lambida pelo mar da Ponta-Verde ganha de presente dos pais da noiva, os dois, Sérgio e Strella, foram advogar em Maceió.
Ao som de Juliette Gréco, foram noites de brisa e sexo daquele casal de classe média. Ela branca como papel pontilhado, alta, magra e de cabelos cacheados; amarelo, barriga de chope, mão nela, outra portando cigarro; baixo, olhos claros, cabelo calvo. As tentativas luxuriantes de se ter um filho eram frustradas entre o terceiro e o quarto mês.
Algum problema nos óvulos da Strella provocavam abortos involuntários recorrentes.
Com a assistência do Dr. Issac Wendell, famoso obstetra do Nordeste, numa tarde de maio, Madame Strella Chevalier Martin deu à luz seu primeiro e único filho, o pequeno herdeiro de Sérgio, que por sua circunferência já avantajada era mais conhecido por Serjão.
O garoto que só usava branco e era um pouco alourado recebeu o nome de Wendell, em homenagem ao obstetra. O primeiro nome do Dr. Isaac Wendell foi preterido por ser alusivo ao evangelho católico, sendo os pais do pequeno Wendell Kardecistas.
O avô de Wendell, Monsieur François Martin, queria uma família típica brasileira para seu filho, com no mínimo três herdeiros. Pelo-sim-pelo-não mandou que fizessem quatro quartos de criança. Logo os três quartos sobressalentes criaram fantasmas dos anjos que não vingaram. Alguns filhos de amigos do avô do pequeno Wendell queriam conhecer o Brasil, para fazer cursos no Itamaraty ou para férias simplesmente. Enquanto Wendell era mimado pelo “único pretinho que entra nesta casa” - como dizia Serjão –, os dias se passavam calmos e quentes.
No volume quatro, a Linha e o Linho ou Deixar Você se revezavam na tarefa de ninar o pequeno Wendell e imprimia a devoção do casal àquele filho; “e fosse aparecendo aos poucos nosso amor, os nossos sentimentos loucos; nosso amor....”
Wendell foi crescendo convivendo com franceses em sua casa, passando temporadas. Aos quatro anos, já jogava videogame com alguns inquilinos e gostava de escutar as estórias de Frederico.
Fred era um aspirante a escritor, tinha vinte e oito anos quando chegou à casa dos Chevalier Martin. Ele é filho de franceses. Seu pai, Monsieur Abel, era diplomata na América Latina e enviou seu filho para pesquisar cultura brasileira. Fred parecia mais Irlandês que Francês. Calado, claro, que o sotaque – por mais esforçado aluno do curso de português – delatava.
Seu livro girava em torno de Isabelle que se apaixonara por um mulato brasileiro, jogador de capoeira baiano. De férias em País do Loire, o nego Rogério conhece a pequena princesa Bella em Saumur – uma cidade mágica. Dezessete anos e tratada como nobre por seus pais, proprietários de um estaleiro. Ele só passava férias, ela passou a acreditar na vida.
Vário Amor era o título do livro e Fred alojou-se em Maceió para captar a alma de seu protagonista. Nas voltas das viagens que fazia à Salvador lia trechos açucarados para o deleite do pequeno Wendell.
Talvez eu quisesse ser um tanto cega, para que quando a escuridão entrasse em minha vida eu nem percebesse a diferença. Pois quando vi Rogério foi assim, como se toda escuridão entrasse em mim. Ele arrebatou-nos com sua presença despretensiosa. Parece que o sol só nasce para ele a cada manhã. E o lençol branco em contraste com a sua cor é como se Gainsbourg voltasse a cantar La Javanaise no meu ouvido a cada virada que ele dava naquele colchão, sob janelas com cortinas brancas de rendas esvoaçantes e a lua testemunhando tudo. Mas só para no outro dia futricar de bandeja ao sol, que o corará ainda mais para que a magia nunca se acabe.
Tudo se deu da mania de Fred de levar negros para dentro de casa. Já foi conversado com ele _ Não traz esses seus amigos pra cá. Nós temos uma criança pequena.
Fred, sem acreditar no que ouvia, resolveu não dar atenção. Continuava recebendo seus amigos pescadores, vendedores e surfistas conhecidos nas praias centrais de Maceió.
Certa vez, quando Fred voltava de uma tarde de estudos na biblioteca municipal – como sempre fizera –, deparou-se com a janela de seu quarto aberta, na verdade escancarada. De lá via-se sua cueca sobre a cama, seus restos de cheetos pelo chão e ele corre – desesperado – para, em primeiro plano, preservar sua privacidade.
Abre a porta do quarto e já vai fechando a janela. Ao ligar a luz, sente falta de seu notebook. Leva a mão à testa e grita: MEUS TEXTOS!!! sai escorregando pelas escadas e chega a sala esbaforido e anunciando:
ME ROUBARAM!
O casal de idosos Chevalier Martin, em visita a casa do filho, se assustaram: _ Mas como, garoto. Só temos nós aqui?!
Subiram, entraram no quarto já meio arrumado e foi quando Fred se deu conta que não só seu notebook, mas também sua câmara digital e seu perfume Paco Rabanne foram larapiados.
Muvuca armada, pensou que no outro dia a brincadeira ia se acabar e seus pertences seriam todos devolvidos.
Mas não!
_ Não seria um de seus parceiros que entraram aqui, não?
_ Mas como? 'perguntei respondendo.' O quarto não é tão grande assim, e se houvesse alguém aqui, eu perceberia.
Eles se entreolharam e foi quando caiu-lhe a ficha. 'Eles desconfiam de mim, acham que forjei o roubo. Pior: que sou gay e isso seria assaz para cometer tal tramoia'.
Derrocado, pedi licença e refugiei-me em meu quarto.
Mas o mal já estava feito.
Os dias se seguiam em maus olhares e até xingamentos.
Tudo saiu do controle.
Mesmo depois do pedido de desculpas, o ódio só aumentava. À noite, preso àquela casa, àquela família, naquele país estrangeiro, parecia que as paredes se estreitavam mais e mais. 'Dar bom-dia a quem me mandou tomar no cu é como me matar sem querer'.
Só choro, não sou evoluído; só choro, só palavras são capazes de me desestabilizar sim; só choro, sou um garoto mimado; só choro, sou humano; só choro, e tô acuado.
Meus pais me dão forças, estão comprando a passagem de volta, é alta estação, só tem para o fim do mês. Enquanto isso, faço o quê. Já evito ler para o Wendell no meu quarto à noite, ele bate à porta, mas finjo dormir; sei do que o ser humano é capaz de fazer para se vingar. E se o Sr. Chevalier Martin acusasse-me de pedofilia? “até provar que sapo não é jacaré...”.
Vários foram os lençóis molhados de lágrimas, várias foram as ligações de seus pais, sua mãe mais ainda, para alentá-lo e fazê-lo crer em um ser superior. Fred, por assim dizer, preferia ignorar conselhos e pôr sua mente para falar mais alto. Como escritor, não admitia ser insultado daquela forma por um ser humano comum.
Apagou o pedido de desculpas do Sr Chevalier Martin com a borracha do orgulho e, um dia antes de viajar, ligou para o hotel Enseada e reservou uma diária. Informou aos proprietários da casa que viajaria um dia antes da data que viajou. Comprou dois litros de gasolina e levou-os para casa em sacolas de loja que trouxera consigo na mala. Achando ainda pouco, foi, com os olhos vidrados, ao supermercado comprar álcool, três litros. Arrumou a mala, ia constantemente à área fumar e voltava pelo corredor lateral da casa, evitando contato pela sala. As chaves no seu bolso, a novela das oito já estava na quarta parte, do seu quarto na cabeceira da escadaria de madeira pôde ouvir três passos distintos; leve, rijo e fino; a subirem aos seus aposentos no primeiro andar. Pela fresta da porta pôde ver as luzes se apagarem e, já sem hesitar, acendeu um cigarro ali mesmo. Ele já tinha decidido, nada o tirará esta certeza.
Foi quando ele abriu a porta do quarto, com a sacola de compras da Le Bon Marché numa mão e sua mala Goyard noutra. Fez o caminho à garagem pelo corredor lateral, encharcou o chão, as paredes e o Alfa Romeo Branco de gasolina e álcool, abriu a porta que dava na área, voltou, acendeu um cigarro, pegou sua mala, trancou a porta da garagem, jogou o cigarro no encharco, andou passo a passo pelo jardim, trancou o portão principal, acendeu outro cigarro e, calmamente – como se não houvesse feito nada – caminhou até um ponto de táxi. e fugiu.
Não o incêndio, que logo foi controlado, nem o Alfa, que o seguro não demorou a cobrir; mas a fuga daquele garoto cujos pais são opulentos e insignes intrigou o casal ...
_ Mas eu pedi desculpas. Como alguém pode guardar tanto ódio em si, só por palavras? meus loro me manda tomar no cu todos os dias quase. Pois em risco as nossas vidas, a sua própria vida. e por quê. Por um computador, uma câmera e um perfume! e a amizade? a amizade está acima de tudo. de todo dinheiro.
O Sr. Chevalier Martin cofiava o bigode e chorava, noite após noite, como Fred o fizera.
Wendell cresceu órfão de suas estórias, entendendo o motivo maior do ódio de Fred: a perda de seus originais. Se a palavra falada tem poder – a fugaz – imagine então a escrita – a eterna – o ladrão virou incógnita e o Sr Chevalier Martin já não chorava mais. A dor passou, o ódio não. Maldizia: _ Aquele francesinho amigo de negro. Tudo ao som de Gil. _ Gil nasceu negro por acidente. Repetia sempre e cofiava o bigode.

Minha Gente!
Eu amo gente.
Adoro o cheiro de gente
Mas vem se as mazelas
Vem como você nasceu
Vem sorrindo,
Vem chorando
Mas vem sem máscaras.
Gosto de abraçar e ficar olhando pro rosto de gente
Mas vem em paz,
Vem como se hoje fosse um dia lindo.
Ah! Gente, eu quero te abraçar,
Quero te dar um abraço apertado
E sei que você precisa
Mas que isso:
Eu imploro para te dar um abraço.
Eu amo gente,
Mas vem como criança
Que um dia foste.
Espero todos os outros alunos saírem, fingindo procurar por algo importantíssimo na minha mochila. Cascavio tudo e várias vezes para no fim sair com o de sempre: meu lanche embrulhado em papel-alumínio e minha garrafa térmica com algum suco de uma mistura de frutas.
Bem devagarzinho, que é para gastar tempo, caminho até a rampa. São dez minutos de tolerância até eles trancarem as portas que dão às salas de aula. Chego à parte alta da rampa e, sozinho, começo a desembrulhar; pão seda com presunto e queijo amassado na chapa: misto quente, e na garrafa térmica o que às vezes é água hoje é suco de laranja, beterraba e cenoura. Mais laranja que é pra disfarçar o gosto das hortaliças. Ao fim o gosto se harmoniza. Como rápido e olhando pros lados, certificando-me que não há ninguém. Uns compram fichas e lancham na cantina, outros, como eu, trazem o seu de casa. Mas o meu parece ser o pior, mesmo sendo o mesmo.
Tava gostoso!
Junto a sujeira e a ponho nos bolsos, limpo um local no chão da rampa e me ponho a brincar. Brincar de olhar em plano aberto tudo o que acontece no pátio é o meu melhor passatempo. Vejo um bonitão, 'tão novo e tão bonito!', com três meninas à volta. Leio em seus lábios a frase _ Quer namorar comigo? As meninas, como se é de praxe, riem. A indagada diz ir pensar. As "amigas", inconformadas por deixar o bonitão a esperar, exigem uma pronta resposta. A menina indagada, bonita também, cabelos pretos, negros e lisos como de índia, põe um dedo na boca e responde _ NÃO! As outras duas a vaiam em comunhão com o bonitão. Pensão elas que serão as próximas a ouvir o pedido. Ele então desdenha de todas _ Ah, eu sei de uma menina da 7ª b que está a fim de mim. A patota se desfaz.
Viro a atenção para o pega-pega de sete garotos; 'nossa como eles correm!' eu não consigo correr assim. Num instante cruzam de leste a oeste do pátio, quando passam pela parte coberta, lá onde ficam os bebedouros e a entrada do ginásio; eu perco a visão. Mas é um torneio e nenhum deles quer perder, logo correm por entre as ilhas de banco de pedra com árvore no meio, correm por tudo que é lugar. Torço por um em especial, o que eu vira jogando futebol num recreio passado. Ele vibra como ninguém: pula, grita, sobe nas coisas e sem vergonha nenhuma de chamar a atenção de todos ali. Acho até que é esse seu objetivo mesmo; chamar a atenção de todos. Quem pega torna-se o pegador e os outros correm nos limites do pátio até o sinal tocar. Não tem fim a brincadeira. É só pra correr e suar. Deve ser divertido, algum dia eu queria brincar assim.
Tem um gordão que sempre me chama a atenção. 'Ele é tão popular!' vive arrudiado de meninas e riem tão alto do alto dos batentes que daqui de cima dá para ouvir nitidamente as risadas. Eles cantam e batem palmas, entusiasmados. 'Ele canta bem, hein!' A dança é forró, o ritmo tornou-se também. Da música eu gosto, mas da dança não. Não sei dançá-la, sou tão duro que nem sei como eu consigo andar. Minha mochila fica balançando muito quando eu ando, devo fazer algo de errado, pois as dos outros não balançam tanto. Eita! O gordão se engasgou no meio da cantoria e não para de tossir. "Risos." Uma menina bate em suas costas, mas acho que para desengasgá-lo tem que vibrar os ossos com a batida. Com aquela gordura o que vão vibrar são as banhas. Outra colega sua levanta seus braços. 'Que confusão!' ela bate forte em seu peito e... acho que deu certo. Volto a ouvir o refrão...
Eita! Deu vontade de ir ao Banheiro. Que horas serão? Queria ir ao banheiro do corredor das salas; é mais seguro. 'Não vou aguentar!' ando pra baixo rapidamente pela rampa, desta vez o Banheiro próximo aos pés da rampa está aberto. Urino e fico por lá sentado na privada até o sinal tocar.
'Esse recreio foi tão bom!'
Um dia quero representar para alguém o que representas para mim.
Ansiosa por ler o jornal e ver se as pretensas melhores amigas da sua filha morta passaram no vestibular do CESMAC, Sandra abre a porta, pega a Gazeta, e folheia até a página onde consta a lista dos aprovados no segundo vestibular de 1992.
Guardados em especial três nomes, com quem sua filha mais brincava desde o maternal e queriam, como ela, serem médicas quando crescessem.
Dos três, dois ela pôde constatar o sucesso nas folhas do jornal:
Lidiane de Alencar Vilar
Moema da Cruz Barros
Pegou o telefone e ligou para parabenizá-las. Chorou, como já havia chorado em seu discurso na aula da saudade do ano passado. Sandra, professora de Português, é de um carisma só. Acima do peso, ela adora cozinhar. Lembro-me dela trocando receitas com algumas alunas. No final de suas aulas, sempre tinha um epílogo a contar. Era amigona das meninas e dos meninos. Foi com ela que aceitei a possibilidade de ter um desvio mental.
Nas suas provas as repostas eram depreendidas do texto. Mesmo assim, incorria em deslizes da língua, tais como a troca do m por n; t por d; b por p ou o contrário.
Sou um espécime de arremedo de minha mãe”.
Depois de recebida uma avaliação corrigida, eu pude ler várias observações no corpo da prova, cientificando-me dos meus erros ortográficos (como se eu não lhas tivesse).
Mas essas correções eram costumeiras. O que diferenciou dessa vez foi a ameaça feita por ela de escrever no quadro verde-lodo os erros dos alunos, identificando-os ao lado.
Aquilo martelou na minha cabeça por meses até a prova posterior. Nessa, eu prestei mais atenção, suei as mãos e busquei nos enunciados palavras que elucidassem minhas dúvidas. A maioria já estava por lá, era só ter um pouco mais de cuidado.
Os resultados saíram e as observações agora eram positivas.
UFA! Livrei-me desse vexame.
O medo faz a mente reagir, o medo é uma ferramenta de ensino eficaz. Os neurônios se conectam rapidamente em busca de uma solução para o retorno ao status quo de segurança.
Eu continuo trocando as letras, não tive mais o estímulo do medo para seguir acertando.
(Me xinga, vai! Tenta me humilhar mais. Sozinho eu já não dou conta. O ser humano é algo incrível mesmo; a imagem e semelhança de deus, e cheio de defeitos. Defeitos feios que desembocam na porta do meu Quarto. Tenho nojo, tenho medo: sou igualzinho. Sou justo).
A professora Sandra foi convidada de honra dos formandos do Terceirão 91. Ela subiu ao palco e deu um depoimento emocionante:
(chorosa) Eu fiquei muito feliz com esse convite para prestigiar a Aula da Saudade de vocês. Se não me tivessem convidado, eu viria assim mesmo (risos). Essa seria a turma onde minha filha, Laís, estaria se formando, caso estivesse viva. Como vocês devem saber, a Meningite tirou minha filha abruptamente de mim há sete anos.
Recomeçar a vida, quer dizer, continuar a viver nesse mundo sem minha filhinha será para sempre difícil. Só continuo nele, pois temos que aceitar as aprovações divinas. Ele, Deus, sabe o que faz. E não acho que ele só manda a carga que podemos suportar, ele sim, manda a carga que merecemos. Não cabe a mim, julgar suas decisões. Outras vidas eu vivi, outras viverei. Tudo se encaixará no decorrer das minhas reencarnações.
(As irmãs presentes dão a entender que se manifestarão. A irmã diretora chega a levantar-se, mas não fala nada).
Minha filha aparece-me em sonhos recorrentes, quem estudou comigo já deve ter ouvido ao menos uma história. Ela me acalenta, foi ela quem me fez entender. Não aceitar...
Continuarei aqui com vocês e torcendo pelo sucesso de todos.
_ Espero que um dia vocês possam representar para alguém o que hoje representam para mim. Eu amo vocês mais que o amor.
Aplausos demorados acompanharam-na até sua cadeira. Aquelas últimas palavras tomaram de emoção a já fragilizada turma do Terceirão, todos receosos do novo mundo que se abrira ali.
Monique morreu aos 6 anos de idade, cursando Alfabetização, em cinco dias de internação. Nem deu tempo de diagnosticar direito a doença. Muito se falou sobre o assunto na época.
A mãe levou-a ao hospital mais caro da cidade, ao passo que o pai insistiu no especializado. Todo esse desencontro de opiniões descambou em brigas do casal que assistia sua única filha sucumbir até a morte num leito de hospital.
Sandra tornou-se expert no assunto, formada em Letras, ela mergulhou fundo na Biologia a procura de respostas cientificamente embasadas.
Não mais que cinco meses o casamento dos pais de Lalá durou. As brigas já eram por motivos tolos e as famílias de ambos já se intrometiam ativamente.
Sandra, que já tinha tendência a engordar, ganhou peso na proporção que sua autoestima diminuía.
Já divorciada, Sandra foi convidada a um churrasco na casa de amigos docentes em Paripueira, litoral norte de Alagoas.
Observava de longe um homem brincalhão que puxava papo com todo mundo. Ele tinha 1,75 m aproximadamente, era moreno corado de sol, usava um óculos aro fino que lhe dava um ar de respeito, apesar da personalidade de bufão; uma barriguinha de chope bastante proeminente e um bigode preto e cheio, totalmente indefectível.
Um amigo em comum a observava fitando-o. Lá pelas 15, ele resolve forçar uma apresentação entre os dois. Uma recém-divorciada e um viúvo pai de duas filhas de oito e dez anos cada. Lá ficaram eles a descobrir particularidades mútuas e um beijo tímido rolou naquela noitinha.
Alguns telefonemas depois, eles já estavam apaixonados fortemente e não viam razão para morar separados. Assim, Sandra ganha duas enteadas e Everton, até então desempregado, consegue uma renda extra, pondo para locação sua casa no bairro do Jacintinho.
Sandra tornou-se figura conhecida e acalentada no meio docente e administrativo da Comunidade Savina Pedrili. Resolveu aproveitar a experiência anterior do seu já marido (casaram-se no cartório com poucos convidados e um almoço tímido no Stella Maris Grill) e indicá-lo para uma vaga na escola.
Everton foi técnico de futebol em uma escolinha na Pajuçara e chegou a coordenar viagens com jovens alunos, sendo o inspetor de disciplina deles. Fazia ainda seus bicos como guia em excursões. No entanto, queria um trabalho fixo e estável.
Sandra conseguiu, com a intervenção luxuosa da Irmã Val, uma entrevista de emprego para o cargo de inspetor de disciplina do Colégio de São José.
Conseguiu a vaga e estava ansioso para começar a labuta. Quem sabe suas filhas sairiam do grupo escolar onde estudavam e iriam a uma grande escola, sonhava ele.
Logo Everton tornou-se temido e querido por todos, mais querido do que temido é verdade. Ele andava pelos corredores com sua postura máscula, sua voz grossa e autoritária e carregava um apetrecho nas mãos. Ele usava um papel enrolado (deve ser a escala de horários e séries) e com ele batia nas costas e cabeças dos alunos que insistiam em passear pelo corredor fora do horário.
Naquele dia eles almoçaram todos juntos e fizeram uma oração. Havia meses que não oravam antes das refeições, pegaram o Escort conversível amarelo e deixaram as meninas no grupo. Seguiram juntos até a escola e no estacionamento se separaram, Sandra sempre dava um tempo por lá antes de subir à sala dos professores, não queria que os alunos os vissem juntos.
Enquanto fumava e esperava seus 10 minutinhos costumeiros, a garagem volta a se abrir e entra um Uno Mille cinza, carro da Professora Tânia de Matemática, as duas não são melhores amigas, mas naquela tarde discutiram por ali mesmo o caso do surto de um garoto que rasgou a roupa do Professor Paulo, de Inglês da 7ª série, foi feito um plebiscito interno para decidir se o aluno seria expulso ou não do colégio.
Tânia estava com a cara abatida, dormiu tarde e acordou cedo naquele dia. Na noite anterior, estava com as amigas numa barraca da orla de Ponta-Verde.
Conversaram sobre música – a maioria das amigas de Tânia é da área artística.
Combinaram de se encontrarem no Rei do Caldinho, às 20h de uma terça, bem no meio da semana. Fátima e Luciana, amigas estimadas de Tânia desde a juventude, estavam ansiosas por contar que enfim sairia o tão desejado disco.
As meninas enveredaram no mundo da música desde a adolescência. Nascidas e criadas no bairro da Jatiúca, região boêmia da cidade, elas sempre foram as revoltadas sem causa do bairro. Vizinhas e filhas da classe média local, estudavam em colégio particular, tinham aula de inglês em cultura, ginástica e natação. Amigas inseparáveis, elas dividiam sonhos e segredos.
Tinham uma queda por esportes. Eram as campeãs nos jogos colegiais e adoravam bater uma bola com os meninos do bairro.
No último ano de colégio, Tânia, pressionada pelas amigas que a cobravam um namorado, resolveu ceder às investidas do armador do time de vôlei do Colégio Sacramento. Ele a paquerava constantemente nos jogos externos intercolegiais do estado.
Ela sempre teve um corpão atlético, pernas torneadas e um bumbum empinado; cabelão longo e liso e uma pele branca sardenta. Não estou certo se ela era levemente cangaia ou gostava de andar com as pernas levemente abertas.
Comunicativa e respondona, não era raro ser pivô de discussão na escola.
Quando do seu primeiro namorado, o armador, ela logo se entregara. Assim que as provas finais acabaram, o resultado da sua aprovação veio junto com o teste positivo de gravidez.
Ela assistiu a suas amigas indo à faculdade de Engenharia enquanto se via às voltas com uma gestação indesejada. O pai assumiu a criança, mas foi ela quem não o quis. Ela já sabia de suas predileções e com o amadurecimento veio também a força para se assumir homossexual.
Seus pais até tentaram argumentar, sua mãe, psicóloga, tentou mostrá-la o quão difícil é essa vida. Em seu consultório ela atendia vários casos de meninos e meninas à beira do suicídio sem saber o que fazer com seus desejos reprimidos. Nunca passara por sua cabeça que teria um caso desses em sua casa.
Quando nós sofremos os baques que a vida dá é que reformulamos paradigmas –. Murmurava sempre a psicóloga.
Suely já dava seus primeiros passos quando Tânia resolve abrir uma escolinha de reforço na garagem se sua casa.
Tomou paixão pelo ensino e, com três anos de atraso de suas amigas, prestou vestibular para matemática. Tânia tem um Q.I. elevado e não teve muita dificuldade em passar para a Federal.
Lá, reencontrou-se com suas amigas que estavam cursando o penúltimo ano no mesmo horário. Voltaram a sair e a beber pelas noites maceioenses.
Sua filha ficava em casa com a avó, D. Espedita, enquanto Tânia seguia suas amigas a tocar pelos bares.
Fátima e Luciana juntaram-se a mais duas amigas e montaram a banda Pink Pig, elas viviam com a agenda lotada. Era raro um grupo só de mulheres, ainda mais no nordeste.
Tocavam pagode. O que não faltavam eram casas especializadas neste ritmo.
Se fosse estipular um ritmo que fosse a cara de Maceió, esse seria o Pagorró ou Forrogode, a junção de pagode e forró. Tudo acaba em Forrogode por aqui. Claro que tem as sazonalidades. O São João é festejado em arraiais de bairros, palhoções em points badalados e forró melódico regado a cerveja. Não há como não se envolver com as composições da Rita de Cássia, ou tentar escutar o CD ao vivo da banda Mastruz com Leite e não se emocionar com aquele ritmo gostoso.


Fiz você pra mim
Meu brinquedo
Meu anjo querubim
Meu segredo
Guardado só pra mim
Meu amor mais louco
E eu te fiz feliz [Anjo Querubim – Petrúcio Amorim]


O pagode é a nossa MPB; reverenciamos a alegria e é isso que ele traz.
_ Vamos pro pagode! São as nossas palavrinhas mágicas para marcar os esquemas de fim de semana.
(Uma banda chamou-me a atenção, Os Intocáveis do Pagode. Com composições próprias e covers, aqueles 10 garotos trajando roupa social, suspensórios e chapéu panamá trazem classe ao estilo. “Eu estive naquela abertura no SESI”).
À noitinha, saí de casa determinado a perder a virgindade frontal de forma convencional; com uma mulher. Uma puta.
Na entrada da Paju, avisto uma negra linda. Nesse dia eu estava com uns livros na mão. Aproximei-me dela, e ela se surpreendeu por ver um garoto a pé andando por ali.
_ Tá fazendo trabalho sobre prostituição pra escola, é?
Eu, claro, disse que não.
_ Quanto é que tu cobras?
_ Cobro Cr$ 82.500.000,00 mais o hotel.
_ Tem que ser no hotel, é?
_ É, pode ser no carro, mas você tá a pé, não é?
_ E quanto é o hotel?
_ Aqui atrás tem um fuleirinho que custa Cr$ 55.000.000,00 a hora.
_ Mas pra que pagar hotel, tem aquele hotel enorme ali, ô! (apontando a praia).
_ Não, eu não faço sexo na praia, não. Mas com você eu faço.
_ Vamos, então.
Quando estávamos pulando o banco de concreto que separa a pista de caminhada da areia da praia, onde os pescadores amarram suas canoas, avistei um casal no cantinho. A menina de saia olhava-me com olhos estatelados. Mas não foi de vergonha não. Pareceu-me mais que de prazer por a vermos dando eu um banco a beira mar de uma das praias mais movimentadas da cidade.
O cara também deu uma olhadinha para trás. Ele de calça comprida e ela de saia. Ele só tirou o cacete e fez movimentos de ida e volta com ela encostada ao muro do porto.
Aquilo até me fez sentir uma coceirinha na região peniana. Mas a coceirinha foi sucumbida pelo pânico de comer uma boceta.
É engraçado como um homem não me mete medo. Se ele vai gozar, se ele vai gostar, se ele vai perceber alguma imperfeição em mim: foda-se.
Mas com mulher não. Fico encucado em fuder gostoso. E se ela vir uma gordurinha onde não deveria ter? será que esse é um pensamento feminino.
Bem, chegamos às pedras. A maré baixa. Alguns casais namoram por lá. Poucos, sim, mas pude ver uns 2 casais. De homem com homem.
Ela tira a saia. A calcinha não ajudou muito. Cor de farda, cor de nada, cor de bege.
Pus a mão lá. Tava peluda a bicha. Confesso que meu pau demorou a subir, mas a puta ajoelhou na areia e o chupou. Enquanto ela o chupava eu escutava ao longe a música do grupo Cobra Criada.
Foi:
24 horas no ar
Vai, chupa, vai bem gostoso.

Só pra ver se o tempo passa
Hummm! Que cacete gostoso...

Se você não me chamar
Suga, Suga.
Eu te chamo de pirraçaAhHã!
Tum tum tum
Abre essa porta que eu quero entrar
Quem é? Sou eu
O seu amor eu quero esperar

Já olhei no relógio, toquei na buzina
Só a língua agora.
E você não faz sinal
Eita, porra!
E nem sequer me liga 
Oxente, não para não.
Nem quer se ligar
Meu joelho tá doendo...
Tô aqui na saída
Tocando a buzina e bato sem parar

Já toquei tum tum tum
É a areia, pega meu livro...
Já bati pá pá pá
Ah, agora tá massa...
Já toquei tum tum tum
Vai, Vai, Vai!
Já bati quero entrar
UHHH! Gozei


Tânia formou-se e logo consegui emprego como professora no Colégio de São José. Ela leciona matemática para o primeiro e segundo grau em uma das mais respeitadas instituições de ensino do estado das Alagoas.
Virou uma jovem senhora pacata, mas boemia. Não abria mão dos hapy-hours, mas dava muito valor ao seu trabalho.
Tinha um amor descomunal por sua filha. As duas nunca saíram da casa de Dona Espedita.
Concreto
Sair para o mundo nos liga a uma realidade irreal, onde não há espaço para sentimentos. É bom ser concreto. No concreto não há espaço para reflexão. Estas até podem pedir espaço, mas são sucumbidas pela agilidade a sua volta, ou pela falta de volta.
Um parque. Sentar ao chão à sombra da árvore faz-nos concretos. Os pensamentos vindos até podem ser o mesmo do seu Quarto, mas em nada me abalarão. Eu sou concreto ali, faço parte da paisagem como peça indissociável. Nada poderá me atingir, pois tudo sou eu e eu sou tudo. Nada que aconteça no mundo concreto é individual. Tudo afeta a todos e a falta de sentimentos me deixa em paz. Faz-me viver mais.
O maior dos meus sentimentos não é o amor nem ódio: é a vergonha. A vergonha é o que me poda. É ela o maior inquisidor dos atos humanos. Os atrozes são desavergonhados. O ato desumano é íntimo, é uma realização de prazer intrínseco. As consequências é que são comuns. Eles, os efeitos, é que podem inibir-nos de praticar nossos atos. Se tivesse certeza do anonimato, de que ninguém iria descobrir, já teria cometido vários delitos. Tenho vergonha da exposição, dos julgamentos. Eu mesmo me julgo e sempre me condeno, mas ainda sou eu sozinho. Ninguém sabe quem é o verdadeiro eu. O sentimento da vergonha se confunde na minha cabeça com o da cobardia. A falta de coragem de cometer delitos: de matar; é que pode estar me guiando, e não a vergonha.
Por que o homem podia matar e agora se tornou feio o ato? O homem em si não é o mesmo? o que muda é o que está a sua volta. Isto muda o homem? Sim, muda. Mas o homem ainda é homem. Seus órgãos internos estão todos lá, os externos também.
Agora nós temos mais motivos para matar. O que não está certo é que os errados são os que têm coragem para executar. Os bons tentam mudar os homens, mas homem é homem e sempre será. O homem não muda, nem mudará.
Por que os soldados podem matar? Quem os dá essa prerrogativa? só deus tira, só deus dá. Mas sem eles, os soldados, quantos já teriam morrido. E os animais? eles matam por tudo: por espaço, por ciúme, por fome. Eles também são seres vivos e ninguém liga deles fazerem isso.
Matar pode ser aceito. O que importa no fundo é o motivo.
Tem beleza na morte. Matar pode significar libertar o outro. Mas nós matamos as pessoas erradas dia após dia.
Temos que matar quem nós amamos. Livrá-los dos julgamentos, das escolhas que a cínica vida nos dá. Somos tão nada que vivemos pensando no amanhã, no entanto, temos que "viver ainda e não viver mais", como previa Nietzsche.
Isso aqui já é o inferno disfarçado de mundo. Toda essa água, planta e aromas disfarçam o real motivo de estarmos aqui. Pagar, Penar.
Pense você aí comigo, são mais de 2000 anos só depois de cristo, e pelo que temos escrito não me recordo de um ano onde esse mundo fosse um paraíso. Logo no início essa palavra se distorceu. Cínico, é assim que eu nomeio a quem nos dá escolha. Pra que pôr o mal se o bem é o que todos querem. E se todos nós estamos errados. Matem. Matem. Matem quem os ama, matem quem você ama. Livrem de escolhas os bons. Salve-os. Salvem mais: não ponham nem mais um no mundo. Deixem esses bilhões virem o que vem.


O que eu seria se não existisse
Um sonho. Como ser isso pra mim é um sonho irrealizável. Não ser nada é algo que no fundo todos os seres almejaram um momento.
Imagine-se não nascendo e chorado e babando e obrando e passando por toda aquela fase de fantasia, onde a vida pode ser maravilhosa. Todos nos enganariam, até o doutor ao nos impor um sexo: _ é homem! aí vêm as tias a nos mimar e provar o quão insignificantes nós somos ao não sermos mais aquilo. E os dias raiam e se põem em constante desespero. Parecem que querem nos revelar algo por meio dos desenhos das nuvens.
Ser nada é muito mais que deixar de ser algo. É não ter escolhas, é não precisar. Mas o nada tem que o ser de fato.
Não queria eu ser o ar e ter que ventar para todos e ouvir reclamações perenes daqueles que precisam de mim, e mesmo assim moldam-me a sua mesquinha necessidade.
'Nunca ter nascido', não quero dizer estar em algum espaço à espera por nascer. É nunca nem ter pensado em existir. É como se o mundo existisse apesar de mim. Não contribuir para nada, nem em pensamentos. Ninguém saberia de mim, nem eu mesmo.
Ou: nascer num parque e só ser sentido pela genitora, nem ser visto. Engatinhar, sem chorar, até uma toca abandonada e ali crescer no escuro e sem insumos. Só viver de providências. Não conseguir, nem querer, escutar o que se passa lá fora. E à noite, quando o nada é mais nada, fugir para algum lugar ainda mais remoto. Não! Ainda assim produziria pegadas. E o ar que respiro? alguém há de quantificá-lo.
Ô universo, por que eu?
A semelhança com o que já existe é o que me consome. Não existir poderia ser substituído, em última análise, por distinguir-se de tudo. Ser um anormal em sentido específico geral. Só ser olhado, e de tão diferente, ser ojerizado. Não quero ser nada para ti, nem pra mim. Qualquer poesia bem dita com uma rima no meio é uma obra prima. Não! não aqui. Não! não aí. Eu não quero existir!
Imagine-se você sem precisar-se ser!
Que os outros todos se iludam nessa corrente enganadora. Poque-a, suma-se. Vejo todos vocês querendo ser algo e quando não quero ser nada, ainda assim eu o quero.
Não existo! Você não está lendo isto! Nem ao menos eu pensei. Não vê que pensa em tanta gente que quer sumir! Morra até seus pensamentos. Deixem-nos em paz, nós ermitões. Ah! se eu não existisse, o nada que eu não seria riria de ti. Mas o nada ainda sim é deixar de ser tudo. Se eu não nascesse, nem estivesse em algum lugar a esperar por nascer, nem nada eu poderia ser. Pois, ainda que pouco, o nada ainda é alguma coisa.
Ha, Ha, Ha! Minha mãe fecharia sem mim? que engraçado seria agora que estou aqui. Será que ela seguiria parindo a espera de mim que nunca viria. E minha desavença... com quem será que ela casaria? Quantas lágrimas poupadas com este simples gesto benévolo. Ha, Ha, Ha! Viajo ainda mais alto, será que o mundo existiria apesar de mim? Ou será que nada, que nada seria criado na Gêneses. Cada um pode ter vindo ao mundo premeditadamente. Cada um de nós pode ser especial; imprescindível. Se sem um, só um mesmo, nada disso sem um de nós pudesse existir. NADA! Olha a tacanhice. Não viríamos o mar, mas nem também a guerra. Eu me sacrificaria se soubesse que sem mim nada existiria.
A criação é mesquinha. Quer algo mais mesquinho que ter um filho! Quem tem um filho pro mundo? Enganam-nos com as maravilhas e depois nos jogam na superfície dela. Só as olhamos de cima. É para eu rir daquelas esperanças que botam em mim.
Qual o ser humano que conseguiu mudar o mundo? Santos vêm e vão em vão. Quantos ainda rechearão 500 páginas de livros? _ Basta! você conhece alguém que conseguiu mudar o mundo? mudar o mundo significa mudar cada um que nele vive. Não, não compreendo como alguém ainda quer ter filhos. Que otimismo besta é esse? Não basta a sua história! Qual pra ti! Pra que perpetuar isto?
Ei, Ei altruísta!
Cuide dos que já estão aqui.
Se eu retirar tudo, o que a mim sobra é tão bom.
Um sonho! É o que eu seria se não existisse.


Eu sou medroso mesmo,
Tenho medo de tudo
Tenho medo de mim
Tenho medo de ti
Tenho medo do mundo
É só por isso que eu sou assim
Eu me desafio a todo o segundo
Quero medir até aonde eu posso ir
Não pense você que isso é fácil pra mim:
É um tormento a saída de casa
Finjo rir;
Finjo ser;
Finjo estar ali.
Não sou nada,
Só finjo
É assim...
É esse o meu subterfúgio para existir
Isso é coragem?
Nunca!
Isso é covardia e das mais cobardes
Coragem pra mim é, apesar de tudo, ser feliz
Apesar do casamento, ser feliz...
Apesar dos filhos, ser feliz...
Apesar do emprego, ser feliz...
Apesar da vida, viver feliz...
Sair de casa com uma mochila nas costas e voltar às 23h com um sorriso para os filhos e uma bala de menta aromatizando o hálito para o marido é que é coragem pra mim.
Negar a isso tudo;
Livrar-se disso tudo e
Motivar-se para desacreditar no tudo é o que sou.
COVARDE!

Noites chuvosa e roupas coloridas
_ Bora, mãe.
_ Peraí, menino.
_ Votei e votaria mais mil vezes nele. Oxe! Todo mundo rouba. Se eu estivesse lá, com certeza roubaria também. Não pense você que foi só ele não.
_ Como é que é, Dona Maria! Eu tô aqui na mão de agiotas, com minha filha doente, sem poder levá-la a um médico e você vem me dizer que vota no Zé do Collor. Olha! Eu vou mandar esse menino te jogar no meio da rua.
_ Bora logo, mãe. Vai chover.
_ Ra, Rai. (é o som estridente do riso de nervoso dela)
Lembro-me de quando da campanha para governador delle. Minhas irmãs e as vizinhas do bairro correndo histéricas para ver aquele homem alto, branco, bonito, de olhos arregalados, fazendo gestou fortes com a mão direita, onde dava pra se ver todas as suas veias pulsando com aqueles pequenos socos no céu. Sua caravana passava pelo bairro de Ponta-Grossa, periferia da cidade de Maceió. Meus olhos brilharam e aquele sorriso, mesmo falso, buliu-me, tive inveja dele. Quis um dia passar e provocar aquele sentimento nos outros. Nenhum ficou imune a sua presença. Perecia estar enfeitiçado. Elle realmente estava ali.
Minha mãe chorava ao ler notícias dos irmãos Arnon de Mello tripudiando um ao outro em público. A primeira vez que comprei uma revista foi a Veja edição 1236, gastei Cr$ 11.000,00 na banca da Praça Santa Tereza.


Estávamos próximos de casa, mas mesmo assim nos molhamos com os pingos fortes que caíam naquela noite.
Chegando a casa, encontramo-la cheia de pequenas poças d’água. O piso de cera vermelho está frio. E os pintinhos que comprei no caminho de volta da escola semana passada estavam zonzos, como se se tivessem bebido.
_ Bota eles debaixo de uma lata e dá umas marteladas. Gritou painho do quartinho dos fundos.
Pus um a um debaixo de uma lata de leite vazia e dei umas batidas fortes em cima dela. Não é que os que já estavam desfalecidos voltaram à vida.
Fiz uma casinha com papelão, forrei com roupas velhas, coloquei-os sobre elas e cobri com mais panos.
Em tempo em tempo ia olhá-los, e sempre havia um que estava cambaleando. Passei a noites batendo o martelo na lata, mas perdi três dos quatro pintinhos que comprei. Não tem explicação, como tudo por aqui. A lata salvou a vida de uma galinha, que seria morta depois.
Corro como nunca correra
Na rebordosa de sentimentos trazidos da escuridão do meio-dia no calçadão, no centro, na porta do palácio, na areia da praia; a segunda continuou. A segunda é dia útil para aparecer. Nela, a certeza de ser visto e ouvido é maior. Foi nessa reta que todos, sem combinar, chegaram à aula trajando negro. Uma peça que fosse. As meninas de baby look e os caras de brim escuro. Uma pulseira estilo rock preta basta para quem não quis infringir as regras de vestimenta: calça brim azul-marinho, farda bege e sapato preto de camurça com meia branca. – o certo seria preta ou azul-marinho, mas as irmãs que usavam hábito branco com meia bege fininha, com certeza não sabiam dessa regra de estilo.
Às vezes, em cada passo, eu sabia exatamente o porquê estava fazendo aquilo. Em outros passos, as respostas não vinham. Eu apenas trajava preto e andava. Andava sobre os passos de Vladmir Palmeiras. Era engraçado ver a cara daquelas pessoas trajando preto, algumas rindo e conversando alto e quando as olhava, como que pecassem, emburravam-lhes a cara e pisavam forte como se pudessem mudar a essência humana.
Escutei numa entrevista com Edson Nery da Fonseca que a fé não destrói a natureza humana. Logo, quem é do mal será do mal e quem é do bem será do bem, independente de sua fé.
Às vezes o mundo leva-me a crê que ele está certo, outras tendo a acreditar que não.
É desesperador constatar que não tenho respostas pra nada. Só perguntas”.


Mundo surdo! _ Escuta minhas canções...
Eu quero poder cantar essa bossa
Sem ter que respirar, sem que segundo algum tenha que estopar
Correr em prosa e versos em trilhos circulares que dão em vão pequeno
Quero morrer se acabar, quando acabar esta canção
Quero viver cantando esta bossa
Quero viver procurando razão
Quero andar pra gastar matéria
Quero amarelar massa cinzenta
Quero tudo neste segundo,
Ciclicamente repetido
Desguarnecido de tudo, ainda assim eu grito.
Com esta bossa, frequentei teus abrigos
Nesta bossa enxergo tudo, é dela ao que aspiro
Fui nela: virei ventríloquo
Com ela: fiquei comigo
Assim que pôde, virou canção
Me cansei do coração. Agora, só algo tipo: _ Céu Cianopirro
Quero das cordas o fole,
Da tua alma o pólen,
Nos teus andares, viagens
Nos teus pesares, além.
Que ávida se divirta. Desse ou dessa nossa vida.
Que com tu cutuco o mundo,
Mesmo num lugar só meu
Do meu quarto conheci tudo. Nele, só se conhece eu
Continuarei cantando, nos grandes palcos do chão
Para quem sabe desvendares
A intimidade desse mundo surdo e cão.


'Tenho vergonha de correr. Corro dando pequenos saltos e sem velocidade.'
A felicidade que vinha daquela sala me fez sentir inveja e ódio. Eu também queria estar rindo com um grupo de amigos no pátio da escola. Contudo estou aqui, por detrás da porta da sala dos professores, escutando suas confraternizações.
Eles são pessoas!
Eles deveriam estar falando sobre mim. Uma reunião grande participando todo o corpo docente, diretores, funcionários e pais envolvidos no meu caso. Tudo para se discutir a melhor maneira de lidar comigo. Como aplacar essa dor de dentro de mim. Mas ao invés disso me ignoram, desistem de mim. Eu só tenho a mim agora.
Mais um ano letivo acaba, passarei de ano, pois só vivo para estudar. As coisas hão de mudar um dia. Entrego na mão de quem? eu tenho ninguém. Eu só neste colégio. Só lá em casa. Só nesta vida.
Por que um deles não sai dali e vem me dá um abraço. Um abraço forte e demorado me salvaria agora.
A porta se abre.
O inspetor sai.
'Droga! Eu pensei alto demais.'
_ O que você está fazendo aqui menino? É férias. Vá pra casa, vá! Ande, caminhe!
Não sabia que eu conseguia correr tanto. Eu desço as escadas pulando os degraus, 52 no total. Cruzo o pátio olhando pro chão. Quero parar de correr e caminhar para que ninguém olhe pra mim. Já não controlo mais as minhas pernas. (Corria como nunca correra). Corro pelo portão principal, passo pelo porteiro que me viu entrar naquela escola pequeno, uma criança. Corro pelas ruas, ouço uma lotação de carro pequeno chamar o nome do meu bairro: _ Ponta-Grossa, Joaquim-Leão! Não tenho dinheiro pra nada. Corro pelo mercado. Todos gritando, oferecendo suas mercadorias, nem me viam correndo. Corro pela linha de trem, nem sinal dele. Agora não é hora batida, hora cheia, hora em ponto. Corro pelo cinema ideal, lá onde passam filmes pornôs. Corro pelas ruas como nunca; não consigo reconhecer pessoas, só corro. CORRO! Corro pela Praça das Graças, benzo-me sem saber pra quê. É tudo tão mecânico, menos o ato de correr. Este é injustificado, este foge do esperado. E eu? Fujo de quê? Fujo pra onde? Fujo por quê?
Chego a casa suado e molhado de lágrimas. Ah! Enquanto eu corria eu chorava. O choro veio instantaneamente, nem escolhi uma melhor hora para ele, só corri e ele veio. Abri o portão, mainha salta do sofá e diz _ O que foi, menino? Nem olho direito para ela, mas eu já a olhara tanto que podia adivinhar como ela estava: 1,69 de altura, barriga de geleia, saliente logo acima da cintura, bóbis no cabelo – bóbis coloridos, uns azuis, outros cor de laranja –, bermuda cotton preta e camisolão, meio velho e meio rasgado, branco com desenho do Mickey Mouse. Este usado sem sutiã, deixando parte do seio, o direito, o maior e mais caído, pra fora. Ela me segue até o quarto, escuta ou sente meu fungar choroso e pergunta _ Você está chorando, Marckinho?
Eu desço de cima da cama com a arma em punho, peguei-a de cima do guarda-roupa. Foi a segunda vez que toquei numa arma, a primeira foi quando a furtei da casa do meu vizinho policial, o bonitão, no assalto do Dia das Crianças que lá ocorrera.
Virei; com lágrimas escorrendo, narinas cheias de excrementos e nada programado. Se pudesse escolher, escolheria estar seco de tudo naquele momento, ao contrário; estava suado.
Apontei a arma em direção à minha mãe. Estava decidido a matá-la. Ela viesse calmamente em minha direção, não tirasse a arma da minha mão, mas sim a dor de dentro de mim. Sentir o beijo da minha mãe. Não o beijo que ela me dera, mas o que eu precisava. Era isso o que eu esperava.
Ela não confia em mim, não sabe quem fez. Não sabe quem gerou no seu ventre.
Minha mãe dá um grito, um salto e no _ MENINO! Corre pra sala. Quando chego à sala, ela, senhora que é, ainda está à porta. Grito _ MÃE! Ela se vira e se ajoelha no chão. Aos prantos, ergue as mãos aos céus _ Meu filho, não mate sua mãe, pelo amor de Deus! O que foi que te fiz, meu filho? Eu tenho seus irmãos pra criar. Meu Deus, me ajuuda!
Todos aqueles deus me enfurece ainda mais _ Mainha, eu não sei o que fazer mãe. Eu tô sofrendo e já pedi a ele para me ajudar. Eu quero respostas, mãe. Por que minha vida é assim, que agonia é essa que eu sinto todos os dias, todas as horas.
_ Meu filho, a vida é só pra se viver mesmo. Não tem explicação.
_ Eu te amo, meu filho!
_ Mainha, e o que eu faço com esse amor? para que serve esse amor se eu não o sinto, se não transforma nada aqui. (Falou isso com as pontas dos dedos da mão direita em concha batendo sobre o peito).
O amor é algo tão pouco. O amor se vir só não transforma nada, só nos toma tempo. Eu não saberia definir o amor. O amor pelo outro passa pela gente, se eu não o identifico, jogo-o em cima de você como qualquer coisa.
Tão bom quanto amar é ser amado, mas se eu não te amo mãe, não posso esperar nada. Só culpa.
Não é que você não mereça, acho mesmo que é grande demais pra mim. Não falarei isso sabendo a grandiosidade da palavra: eu quero é senti-la. Palavras são fáceis demais. Não abalam nada.
Lembro-me como hoje que vinha da cozinha um cheiro bom de galinha cozida.
Galinha Cabidela, precisamente.
Olho pra porta aberta e vejo a rua, o sol forte, as pessoas andando. Uma professorinha me chamou atenção. Vinha vindo andando à direção de casa. Pé-pós-pé, guarda xis com tampa de apagador numa mão e pasta com propaganda de congresso noutra. Quando parecia que ela iria entrar, boca se abrindo como se fosse falar comigo, ela sumiu.
Desvio o olhar para dentro de casa e vejo minha mãe ajoelhada ainda.
_ A vida é só pra se viver, meu filho. Não tem explicação. Ela repete.
Chora fácil.
É tão simples para ela. É como correr para mim.
Volto a olhar o portão aberto. A professorinha não está mais lá. Volto o olhar pro chão e ela continua lá. Palmas das mãos juntas, choro copioso e só escuto deus entre pedidos saindo de sua boca.
Faço o que de melhor sei fazer. Fujo.
Corro pelo portão só levando a roupa preta e a arma escondida dentro da calça.
Passo novamente pelos mesmos caminhos, benzo-me ao passar pela Igreja das Graças. Todos estão de preto na rua, ninguém me ver.
Desvio o caminho pela rua do posto que dá na Praia da Avenida. Corro pela areia do mar até a vila de pescadores.
Ninguém olha pra mim.
Vejo a estátua da liberdade imponente do outro lado da Avenida.
Sem parar, corro entre os casebres e quando avisto alguma poça de lama – pulo.
Nas pedras que ficam por detrás do porto, sento-me.
Suado, descanso enquanto vejo a maré subir.
Não consigo pensar em nada. Ou melhor, só consigo pensar em tudo.
Nada vem para mim ajudar.
Pessoas fazem caminhadas e eu ali sentado vejo o sol me abandonando também.
Deixo a arma num cantinho entre as pedras.
Limpo o suor do rosto e, agora andando lentamente, volta para casa.
Chegando lá aceito o abraço da minha mãe. É tudo o que ela pode mim dá. É só o que ela tem.
Ninguém toca no assunto. Fizeram um pacto para não tocar no assunto.
Tomo banho e vou dormir.
Fico deitado na cama olhando o dia amanhecer pelas frestas da telha que dão para se ver da janela do meu Quarto.

Segunda-feira.
Dia 03 de fevereiro de 1993
Primeira aula do primeiro ano do segundo grau do Colégio de São José. O colégio das freiras.
Sentado na quinta fila da esquerda para direita e na penúltima cadeira está Marcko.
Calado.
Envolto em pensamentos cruzados.
Mais um ano se passou.
E nada mudou.
A nova professora de português – Catarina – cabelos ruivos, sardas nas bochechas e uma voz bem fina, sorri.
Bem-vindos a mais um ano letivo, crianças!
Eu quero morrer e não consigo.
Nem um músculo se mexe naquela penúltima cadeira da quinta fila da esquerda para direita daquele colégio de freiras.






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