O
homem que dormia para não viver
Naquela
manhã eu não queria acordar. Não queria ver o mundo. Quando a
minha mente despertou, neguei-me a abrir os olhos. Cheio de
compromissos chatos; à noite minha mãe ligaria, os bons-dias que
teria de dar me massacrariam. Não, não quero abrir os olhos. Não,
não vou abri-los. Passar os dias nesta cama me poupará do mundo.
Mais que isto: poupará o mundo de mim.
Dormir
é o mais próximo da morte que eu consigo.
Numa
kitnet toda branca, numa cama conjugada forrada com uma colcha
florida e clara, na tv ligada na tela azul do modo AV, nos três
travesseiros com fronhas desiguais, na barba por fazer, na ressaca de
beber sozinho em casa – capeta – ouvindo fitas-cassetes piratas
de um novo jazz; despertaria para mais uma semana de trabalho na
secretaria de uma prefeiturazinha, numa sala com mais dois colegas de
trabalho, num computador com recursos limitados.
NÃO!
Não
vou tentar nem abrir os olhos. A claridade me atirará para
realidade, mas eu resolvi que não vou mais acordar. A fome, a dor,
as necessidades, o telefone, o trabalho e os conhecidos serão
resolvidos em sonho.
Num
puff branco quadrado, cartas de suicidas; na tv, o azul da tecla AV
continua a azular todo o quarto; sobre a cama, meu corpo estendido –
pelos ouriçam, olhos vidram – só os braços se mexem.
Estico
o esquerdo e cato no puff folhas de papel a4 com as cartas impressas.
Leio-as lentamente como que degustasse palavras. A leitura funciona
como um sonífero para mim. Escolhi as cartas de suicidas não por
nada em especial, só por estarem sempre ali, à mão. Em verdade,
gosto do que leva mais de uma leitura para se compreender, mas não a
abro mão, mesmo que mais de duas tenha que ler.
Passei
todo o domingo comendo coração de galinha para ver se algum amor
entrava em mim. Mas eu bebia. Acho que o álcool cortou o efeito.
Tudo
somado, os olhos de estatelados passam a lassos, o corpo já estava
parado, os olhos a pestanejar, a nublação invade minh'alma. Durmo.
e voo por entre árvores e bem alto. É tudo tão feérico aqui de
cima. Só seres vivos – filosoficamente falando – a vida é só
isso mesmo, para se existir? não vejo humano em plano aberto algum.
Só verde, marrom e roxo. e o nada. Penso em nada; só voo. Braços
abertos ou fechados. Nada bate em mim, não encosto em nada, não
sinto nada. Sou o NADA ali. Aqui não se há noção de tempo: é
tudo metafísica.
Das
noites que precisava acordar, só me recordo do balançar das pernas.
Um autoninar-se desconcertante.
Vou
ao encontro de Aurora, vejo-a do alto guardando-me, irrompo os
portais e pormenorizo meu dia. Enfatizo os corações de galinha –
deixo o capeta latente, sei que ela não gosta que beba – ela diz
que sente minha falta, a falta de meu abraço, ela é real eu;
obnubilado.
Vou
falar com Cássio, meu colega de trabalho. Ele não está, mas deixo
recado, sentado, no cominho que ele o fará. ‘NÃO VOU MAIS
ACORDAR, SEGUNDA SUGURA AS PONTAS LÁ!’ o Cássio é tão
resmungão, irá reclamar tanto ter que acabar os relatórios
circunstanciados sozinho, que quando o vejo bocejar, já o imagino
iracundo a me maledizer. À sua espera, malocado, um abraço é
deixado.
Na
volta ao alto, converso com o tio Zécarlos, ele diz que coisas boas
virão, mas que ainda não são os números da Mega que me prometera
antes de partir. Pergunto o porquê, ele diz: não depende só de
mim. Entendo, desentendendo. Rio-me, e voo-me.
O
vento daqui é brisa, é nem frio nem quente: é como se o mar
estivesse bem a nossa frente. Não resisto e canto. Baixo, claro,
pois qualquer passo em falso eu caio.
Como
aqui não tenho dinheiro, não pago. Mas me justifico aos credores
que encontro no caminho; pelo-sim-pelo-não.
Dentro
do sonho sonhei que tinha acordado, quando abri os olhos, estava em
casa. Tinham se passado 27 dias e 27 noites. Acordei atordoado, e
estonteado – agora como maravilhado – no espelho do meu quarto,
pude ver uma marca marrom de batom em minha bochecha esquerda.
_
desde quando estás aqui?
_
desde o segundo dia, meu filho.
Minha
mãe – Dona Aurora – não saiu dali de junto de mim desde que a
ligação de telefone não atendera.
Não
quero viver. Não gosto. Durmo muito, sinto culpa ao acordar, por ter
dormido muito. Dormir é o mais próximo da morte que eu consigo
sentir. Viver!
São
todas sensações. Todas as sensações. Às vezes eu queria abrir os
olhos e ver o que estava acontecendo, mas nem pra isso eu presto.
Posto
assim aqui, isto parece até mentira.
Antes
fosse.
Tudo
aconteceu.
Só
a mãe que não era a minha.